LINGUAGEM MATERIALISTA NÃO É NECESSARIAMENTE ANIQUILACIONISMO
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1. A morte e a vida não são a mesma coisa, minha filha... A morte é a aniquilação, a outra mantém um lugar para a esperança.

 

As Mulheres Troianas, de Eurípedes.

 

2. Ele demandou do primeiro: ‘Quais se mostraram mais numerosos, os que estão vivos ou os que estão mortos?’ Ele respondeu: ‘Os vivos, porque os mortos não existem mais’.

Vidas, de Plutarco.

 

3. Quem louvará o Altíssimo na moradia dos mortos, e em lugar dos vivos que lhe rendem graças? Quando um homem morre e cessa de existir, termina a ação de graças: é quando vive, e está com saúde, que pode louvar o Senhor.

 

Eclesiástico 17:27, 28, 30, TEB.

 

4. Por que não perdoas as minhas ofensas e não apagas os meus pecados? Pois logo me deitarei no pó; tu me procurarás, mas eu já não existirei.

 

Jó 7:21, NVI.

 

Das quatro citações acima, as duas primeiras são da antiga literatura grega e as duas últimas da Bíblia. O que todas elas têm em comum está bastante óbvio: todas afirmam que a morte é o fim da existência, a própria aniquilação!

 

Se o ponto de partida do debate entre imortalistas e aniquilacionistas se desse com base em tais textos, haveria a nítida impressão de que os aniquilacionistas estão certos em seu materialismo “cristão”. No entanto, conforme é de amplo conhecimento, tal conclusão não está de acordo com o pensamento grego, pois os gregos* eram imortalistas por excelência. E também, como está exaustivamente demonstrado em outros artigos deste website, seria um erro dizer que a Bíblia atesta o aniquilacionismo, visto que ela não faz isso. Então como explicar as quatro afirmações do cabeçalho acima?

 

* Os gregos são conhecidos pela crença na imortalidade inerente da alma, porém usavam a palavra “alma” com outras acepções, tais como a de alma humana (ser físico) que deixa de existir quando morre, como foi o caso do escritor Sófocles: “Tais foram os males pelos quais passei, conduzidos pelos deuses, que penso: a alma de meu pai, se ela voltasse a viver, não iria me contradizer”. (Édipo em Colono, v. 995). Para saber outros exemplos e as demais acepções, consulte http://www.adelmomedeiros.com/almasgregas.htm

 

Elas se referem à pessoa humana que vive e respira oxigênio neste mundo. Ou seja, o cenário apresentado é do ponto de vista terrestre e material. Nenhuma dessas declarações está contradizendo o fato de que uma alma invisível e imaterial sobrevive à morte do corpo físico. Se isto é indubitavelmente verdade no caso grego, no bíblico não menos. Note o que disseram Jó e Eclesiástico em outras partes:

 

“Samuel foi amado pelo seu Senhor; profeta do Senhor, ele estabeleceu a realeza e ungiu os chefes estabelecidos sobre seu povo. . . Até depois de morrer profetizou, anunciou ao rei seu fim; do seio da terra elevou a voz, profetizando para apagar a iniquidade do povo”. – Eclesiástico 46:13-20, BJ.

 

“O homem, nascido de mulher, é de vida curta e está empanturrado de agitação. Como a flor, ele brota e é cortado, e foge como a sombra.... Quem dera que me escondesses no Seol, que me mantivesses secreto até que a tua ira recuasse, que me fixasses um limite de tempo e te lembrasses de mim! Morrendo o varão vigoroso, pode ele viver novamente? Esperarei todos os dias do meu trabalho compulsório, até vir a minha substituição. Tu chamarás e eu mesmo te responderei. Terás saudades do trabalho das tuas mãos... Tu o levas de vencida para sempre, de modo que ele se vai embora; Desfiguras-lhe a face, mandando-o embora. Seus filhos são honrados, mas ele não o sabe; E tornam-se insignificantes, mas ele não os considera. Apenas a sua própria carne [a do varão vigoroso], enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele [no varão vigoroso], continuará a prantear”. – Jó 14:1, 2, 13-15, 20-22, TNM, colchetes acrescentados.

 

Como se nota, embora Eclesiástico em um trecho afirme que a morte implica no fim do homem (ser humano), ele informa em outro que o falecido profeta Samuel profetizou do seio da terra (o Seol, o mundo dos mortos), de modo que Samuel existia de alguma maneira nesse outro lugar, e com a permissão de Deus voltou para manter um último contato com o infiel rei Saul. Para uma análise detalhada sobre este tema, leia este artigo:

 

O aparecimento do falecido Samuel à necromante foi verídico?

 

O mesmo está implícito nas palavras do combalido Jó, pois, ao passo que ele lamenta seu sofrimento e sua iminente “inexistência” depois da morte, ele indica em outro momento que continuaria existindo no mesmo seio da terra de onde Samuel profetizou. Sendo assim, a “não existência” mencionada pelos escritores de Jó e Eclesiástico não se refere ao fim da alma invisível que toda pessoa possui, mas apenas o de sua manifestação material quando está no corpo físico. Da mesma maneira pode ser compreendido o texto a seguir, que é bastante citado por aniquilacionistas:

 

“A alma que pecar — ela é que morrerá”. – Ezequiel 18:4, TNM.

 

Essa alma é simplesmente a criatura humana que está sujeita à morte, com seu corpo perecível. Ou seja, o texto acima apresenta apenas uma das acepções da palavra “alma”, ainda que seja a mais comum no texto hebraico. Não se refere à alma que toda pessoa tem e que sai do corpo quando este morre. Perceba isso no texto supracitado de Jó, que deixa implícito que uma alma abandona o corpo depois da morte, alma esta que pranteia por causa do sofrimento desse mesmo corpo. Conforme alguns concluem equivocadamente, essa alma não é simplesmente a vida que deixa de existir quando os mecanismos físicos param de funcionar, pois a vida em si não é uma pessoa que sofre devido aos padecimentos de um corpo doente, como era o caso de Jó. Essa alma triste a que ele se referiu é a mesma que a Bíblia mencionou em outro texto, em referência à morte de uma pessoa:

 

“E o resultado foi que, enquanto sua alma* partia (porque estava morrendo), ela chamou-o pelo nome de Ben-Oni, mas seu pai chamou-o de Benjamim”. – Gênesis 35:18, Ibid.

 

* Infelizmente alguns tradutores bíblicos tomam a liberdade de não traduzir o texto literalmente e substituem a palavra “alma” por algo que denote a vida do ser humano. Isto acaba por atrapalhar o entendimento correto do texto e dar um subsídio, ainda que frágil, para os aniquilacionistas que negam o verdadeiro entendimento bíblico sobre o assunto. É o caso, por exemplo, da Nova Versão Internacional: “Já ao ponto de sair-lhe a vida, quando estava morrendo, deu ao filho o nome de Benoni. Mas o pai deu-lhe o nome de Benjamim”. A vida do corpo apenas desaparece quando a alma o deixa definitivamente. A vida não sai literalmente para nenhum lugar. Para entender o texto dessa outra maneira seria preciso simbolizar a partida da alma.

 

Biblicamente falando, a realidade da existência humana é dual, ora se refere ao corpo em pleno funcionamento, ora à alma que dá vida e consciência ao corpo. Na morte essa alma deixa o mundo físico e desce ao Seol / Hades (Salmo 16:10; Atos 2:22-28), caso não seja levada para o “seio de Abraão” (paraíso; Lucas 16:22) ou para o céu (Apocalipse 20:4), uma possibilidade que se abriu depois da época de Cristo. Conforme já visto em outros estudos, ser o mundo dos mortos retratado nas profundezas da Terra comprova que a alma que vai para lá é imaterial e não se refere ao corpo que fica na sepultura. Naturalmente, a literatura grega também apresenta um quadro duplo, desde os tempos hométicos, embora dê muito mais ênfase à acepção espiritual da alma, ao contrário do que acontece nas obras hebraicas.

 

1. Alma que morre: “As almas que morreram em combate são mais puras do que as que morrem de doenças”. – Fragmento 96b = B 136, de Heráclito.

 

2. Alma invisível que desce ao Hades depois da morte: “Cante, deusa, a ira do filho de Peleu, Aquiles, a ira destrutiva que trouxe incontáveis desgraças sobre os aqueus, e que enviou para o Hades muitas almas valentes de heróis, e fez de todos eles chão para cães e todo tipo de pássaro”. – Ilíada 1:1, de Homero.

 

Esse trecho da Ilíada é uma alusão aos corpos físicos dos que caíram mortos e que, com o tempo, se misturaram com o solo, sobre o qual bichos caminhavam. Sentido semelhante há em um salmo bíblico: “Eis o destino dos que confiam cegamente em si, o futuro dos que se comprazem nos seus discursos: estão encurralados no Sheol como ovelhas, a Morte os leva a pastar. No dia seguinte, homens retos os calcam aos pés, seus traços apagam-se no Sheol, estão longe dos seus palácios”. – Salmos 49:14, 15, TEB.

 

Um antigo escritor cristão do século 2 fez referência a esse tratamento duplo, e aparentemente contraditório, que os gregos davam à palavra “alma”. Ele mencionou isso numa tentativa de convencer um descrente da Grécia de que determinadas verdades bíblicas podem ser vistas esporadicamente na literatura grega:

 

“Certamente [os poetas e filósofos gregos] disseram coisas confirmadoras dos profetas... E entre os profetas, Salomão disse dos mortos: ‘Haverá cura para a vossa carne, e cuidado com os vossos ossos’. [Provérbios 3:8] E o mesmo diz Davi: ‘Os ossos que quebrastes se alegrarão’. E de acordo com estes ditos foram os de Timocles: ‘Os mortos são lamentados pelo Deus amoroso’... E os defensores da impunidade confessaram que haveria um julgamento, e aqueles que negaram que há uma sensação após a morte reconheceram que tal sensação existe. Homero, portanto, embora tivesse dito: ‘Como visão passageira a alma faleceu’, disse em outro lugar: ‘Para o Hades foi a alma desencarnada’, e novamente: ‘Para que eu possa passar rapidamente pelas portas do Hades, me enterrem’.”. – Para Autólico, de Teófilo de Antioquia, Livro II, cap. 38, c. 180 d.C., colchetes acrescentados.

 

Portanto, a linguagem materialista vista no início, que pode acalentar o desejo dos aniquilacionistas sobre o assunto, na verdade é apenas um dos lados de uma mesma “moeda”. Quando devidamente contextualizada ela não tem nada a ver com ideais materialistas, tais como a da inexistência total depois da morte representada por um sono simbólico da alma. Tal linguagem diz respeito apenas à existência física da pessoa, sem negar sua existência espiritual. Não enxergarem essa realidade dupla é uma evidência de que os aniquilacionistas ainda estão no “jardim da infância” desse assunto. Até certo ponto isso é normal, pois é fácil cair na armadilha da linguagem materialista e eles geralmente desconhecem quase que completamente as explicações a favor da crença de que a alma sobrevive à morte do corpo. Na verdade, elas nem seriam necessárias, uma vez que a Bíblia deixa isso claro em vários versículos.

 


“Quem dera que me escondesses no Seol... Tu chamarás e eu mesmo te responderei”.

 

Quanto aos aniquilacionistas que já leram explicações que esclarecem cabalmente esses fatos relacionados à dualidade da existência humana, mas mesmo assim não arredam o pé de sua opinião materialista, são convidados à reflexão. Não estariam eles agindo com orgulho e teimosia? As evidências são tão fortes e convincentes contra o que eles defendem que é deveras surpreendente eles não caírem em si e reconhecerem que estão errados.

 

 

Fortaleza, 03 de março de 2020.

 

Autor: Adelmo Medeiros

 

 

CRÉDITO DA IMAGEM

 

Jó saindo do Seol após o chamado de Deus

 

– Descida ao limbo, de Andrea Mantegna (1492)

 

http://www.hellhadesafterlife.com/sheol/sheol-in-bible-

 

 

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