USOS DA PALAVRA “ALMA” NA LITERATURA GREGA E CONCEITOS SEMELHANTES
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As citações a seguir abrangem os dois grandes períodos da literatura grega: o homérico e o platônico, possibilitando assim uma visão bem abrangente de como os gregos usavam no cotidiano o termo psykhé (ψυχή, “alma”) e seus derivados, bem como conceitos relacionados que aparecem também em outras culturas, a exemplo da judaico-cristã.

A verificação de tais obras é interessante porque elas demonstram que o antigo povo grego, mesmo crendo majoritariamente na imortalidade inerente da alma, usava ocasionalmente uma linguagem semelhante à que está na Bíblia, dentro da qual existem aquelas expressões que os aniquilacionistas gostam de citar para sustentar a opinião materialista que defendem, em especial aquelas sobre almas morrendo.


‘Sua alma desceu ao Hades sombrio para fazer companhia aos companheiros mortos’ – Morte de Aquiles

No presente estudo, os colchetes, negritos e grifos nas obras citadas são todos meus. E a menos que haja outra indicação, a tradução da Bíblia utilizada é a Tradução do Novo Mundo, de 1986.

Almas como sendo as próprias criaturas terrestres (pessoas ou animais)

1. “E que seja assim estabelecida [por lei] a disciplina e a nutrição das almas viventes”. – Leis 9:874d, de Platão.

2. “Nem a deidade se contentou em apenas cuidar do corpo do homem. O que é ainda de mais elevado é o momento que ele implantou nele o mais nobre tipo de alma. Pois afinal que outras almas viventes se detém na existência dos deuses que puseram ordem no universo, e nas maiores e mais belas coisas? E qual espécie de coisas vivas além do homem adora os deuses?”. – Memorabilia (Ditos Memoráveis) 1:4, de Xenofonte, sobre os ditos e feitos memoráveis de Sócrates.

3. “E que a alma de viventes, isto é, a substância das almas viventes, é a sua essência de acordo com essa descrição, e a forma e a essência de determinado tipo de corpo”. – Metafísica, v. 1035b.15, de Aristóteles.

4. “Vendo, então, que tal cuidado é esbanjado em alimentos do corpo, certamente todo o cuidado deve ser tomado em nome da nossa própria cuidadora e mãe de nossos filhos, em quem está implantada a semente da qual brota uma alma vivente”. – Economia 3:2, de Aristóteles.

5. “Conforme eu já falei antes, a Índia fica numa das partes mais distantes do mundo no limite oriental, e na Índia todas as almas viventes quadrúpedes e voadoras são muito maiores que as das outras terras”. – Histórias 3:106, de Heródoto.

6. “Os trácios que atacaram Mícale saquearam as casas e os templos, e massacraram os habitantes, não poupando nem os jovens nem os idosos, mas matando a todos que caíam diante deles, um após o outro, crianças e mulheres, e até mesmo animais de carga, e quaisquer almas viventes que vissem”. – A Guerra do Peloponeso 7:29, de Tucídides.

Sobre a expressão “alma vivente” dos trechos supracitados, leia o tópico final mais adiante.

Alma das pessoas

1. “Que tipo de alma você acha que era a dele, quando ele poderia ser rebaixado ao pior conceito por dar informação contra seus próprios amigos, com tão pouca perspectiva de libertação?”. – Contra Andócides 6:23, de Lísias.

2. “Estou determinada a fugir deste casamento que ofende a minha alma, conduzindo o meu destino pelas estrelas”. – As Mulheres Suplicantes, v. 392, de Esquines.

3. “Mas eu penso que é porque a coroa é o presente dos estrangeiros de que a dedicação é feita, para qualquer um que atribua um alto valor sobre a gratidão de um estado estrangeiro do que a de seu próprio país, e tornam assim suas almas corruptas.... O quinto, ele se tornará um homem de alma corajosa, que em perigos e riscos não abandonará o povo”. – Contra Ctesifonte 3:46, 170, de Esquines.

4. “Não cause dano à sua alma por se consumir em preocupações”. – De liberis educandis (Da Educação dos Filhos), v. 17, de Plutarco.

5. “Pois não é, presumo, pela correção ou incorreção de suas opiniões que alguns deles se opõem a aparentes perigos com bravura e impetuosidade enquanto outros têm temores e tremores desamparados em suas almas”. – De virtute morali (A Virtude Moral), v. 11, de Plutarco.

6. “Por isso aliviará meus sentimentos ao dizer-lhe como sua alma* é má”. – Medeia, v. 474, de Eurípedes.

* Ao invés de “como sua alma é má”, os tradutores costumam verter por: “como você é mau”.

Alma dos animais

1. “Embora tenhamos descoberto a arte de lidar com os animais ferozes, através da qual domamos suas almas e incrementamos o seu valor, ainda assim nós mesmos somos impotentes para ajudar a nós mesmos a perseguir essa virtude”. – Discursos 2:12, de Isócrates.

2. “Mas no caso de alguém querer que seu próprio cavalo se torne adequado para um desfile, com uma excelente postura e apresentação, tais qualidades de nenhum modo podem ser achadas em todo cavalo: mas é essencial que ele seja pleno de alma e forte de corpo”. – A Arte da Equitação 11:1, de Xenofonte.

3. “É possível até para um cavalo ruim se tornar um bom, se a natureza tiver lhe dado uma boa alma”. – Economia 11:6, de Xenofonte.

4. “Neste momento, então, você está admitindo o ponto que a alma dos animais tem uma maior capacidade natural e perfeição para a geração de força”. – Bruta animalia ratione uti (Os Animais Usam a Razão), v. 3, de Plutarco.

5. “Mas os animais têm almas completamente inacessíveis e fechadas para essas paixões adventícias e vivem suas vidas como que livres de ilusões vazias, como se morassem muito longe do mar”. – Bruta animalia ratione uti (Os Animais Usam a Razão), v. 6, de Plutarco.

6. “Você decidiria possuir um cavalo de alma* tal que resultasse em uma má montaria voluntariamente ou involuntariamente?”. – Hípias Menor, v. 375a, de Platão.

* “Alma” aqui tem o sentido de “temperamento”, porém verti conforme está no original.

Almas que morrem ou se salvam

1. “As almas que morreram em combate são mais puras do que as que morrem de doenças”. – Fragmento 96b = B 136, de Heráclito.

2. “Quanto a mim eu continuei com o pensamento intrigante de qual seria a melhor maneira de salvar minha própria alma e a de meus companheiros”. – Odisseia 9:423, de Homero.

3. “Brilhante foi o escudo que o guerreiro Saian levantou, mas que, acidentalmente, eu joguei no mato.... então salvei minha alma”*. – Paz, vv. 1299, 1300, de Aristófanes.

4. “Sim, ele nasceu de minha própria alma e se afastou de mim, da sua mãe que o concebeu e se refugiou em terras estrangeiras!.... Nenhuma alma generosa quererá depois de si um nome vil, por ter vivido vida indígena, manchando a boa fama apenas para não morrer”. – Electra, v. 785, de Sófocles**.

* Neste verso os tradutores costumam traduzir o acusativo psykhén por “vida”, ao invés de “alma”, da mesma maneira que fazem em 1 João 3:16 (http://www.utexas.edu/cola/centers/lrc/eieol/grkol-3-X.html).

** Tradução em português de Mário da Gama Kury, publicada em “Uma tragédia grega, Electra, Sófocles”, Expresso Zahar, 2013, 1ª edição.

5. “Não estou falando sobre bens materiais; se você salvar minha alma, você salvará o meu bem mais prezado”. – Orestes, v. 640, de Eurípides.

6. “Agora eu vejo o objetivo da vida aqui do meu lugar…. eu me lançarei desta rocha com um salto para o fogo lá embaixo, para misturar as minhas cinzas com as de meu marido nas chamas escarlates, para estar deitada ao lado dele, do divã de Perséfone, pois eu nunca irei, para salvar minha alma, provar a você não ser verdade onde você se deita em seu túmulo”. As Suplicantes 10:12, de Eurípides.

7. “Outro, passando por um túmulo à noite, e imaginando que viu um fantasma, correu para ele com lança erguida, e, quando ele a empurrou nele, exclamou: ‘Para onde você está fugindo de mim, você alma que deve morrer duas vezes?’.”. – Apophthegmata Laconica (Citações de Lacônia), Provérbios Espartanos, v. 69, de Plutarco.

8. “Tais foram os males pelos quais passei, conduzidos pelos deuses, que penso: a alma de meu pai, se ela voltasse a viver, não iria me contradizer”. – Édipo em Colono, v. 995, de Sófocles.

9. “Um sorriso efêmero iluminou seus lábios, e logo em seguida sua alma renunciou à vida”. – Píramo e Tisbe, mitologia grega.

Alma como sede dos sentimentos

1. “Ó minha alma, tu tens sido mais afortunada do que as palavras podem expressar”. – Ifigênia em Tauris, v. 835, de Eurípedes.

2 “Que eu seja apto para afastar da minha cabeça a covardia amarga e esmagar os impulsos enganadores da minha alma”. – Hinos Homéricos 8:10, a Ares.

3. “Por isso que pelas boas qualidades que possuímos em nossas almas que adquirimos também as outras vantagens das quais necessitamos”. – Da Paz 8:32, de Isócrates.

4. “Ó minha alma, como posso eu calar-me?”. – Íon, v. 859, de Eurípedes.

5. “No meu caso, entretanto, este golpe súbito me surpreendeu e destruiu minha alma. Estou arrasada e renunciarei toda a alegria da vida. Eu quero morrer”. – Medeia, v. 225, de Eurípedes.

6.Por que você está tão ansioso, criança? Não deixe que a luxúria louca pela batalha encha sua alma e te leve para longe. Rejeite essa paixão do mal enquanto você ainda é jovem”. – Sete contra Tebas, v. 686, de Ésquilo.

7. “A alma dela ficou absorta nos infortúnios dele”. – Vidas (sobre Antonio), de Plutarco.

8. “Quando Orfeu recebeu a terrível notícia, sua alma cobriu-se de luto”. – Orfeu e Eurídice, mitologia grega.

9. “Hécuba querida — disse o rei à sua esposa —, alegre sua alma, pois parece que já não tarda o nascimento de nosso segundo filho”. – O Nascimento de Páris, mitologia grega.

Alma que vai para o Hades

1. “Então, assim que eles pegaram um homem derrubado ou recém-ferido, um deles iria fincar suas grandes garras sobre ele, e sua alma iria para baixo ao Hades para esfriar o Tártaro”. – Escudo de Héracles, v. 245, de Hesíodo.

2. “Gostaria que eu fosse capaz de roubar-te a alma e a vida, e enviar-te para a casa do Hades”. – Odisseia 9:525, de Homero.

3. “Cante, deusa, a ira do filho de Peleu, Aquiles, a ira destrutiva que trouxe incontáveis desgraças sobre os aqueus, e que enviou para o Hades muitas almas valentes de heróis, e fez de todos eles chão* para cães e todo tipo de pássaro”. – Ilíada 1:1, de Homero.

* Aqui é uma alusão aos corpos físicos dos que caíram mortos e que, com o tempo, se misturaram com o solo, sobre o qual bichos caminhavam. Sentido semelhante há em um salmo bíblico: “Eis o destino dos que confiam cegamente em si, o futuro dos que se comprazem nos seus discursos: estão encurralados no Sheol como ovelhas, a Morte os leva a pastar. No dia seguinte, homens retos os calcam aos pés, seus traços apagam-se no Sheol, estão longe dos seus palácios”. – Salmos 49:14, 15, TEB.

4. “Ele amarrou uma corda que pendia no alto de uma grande árvore e se enforcou nela, e a alma dele desceu ao Hades”. – As Vidas dos Filósofos Eminentes 8:2, de Diógenes Laércio.

5. “Mas se alguém esconde tesouros em casa, e ataca outros com zombaria, ele falha ao considerar que está renunciando sua alma para o Hades sem glória”. – Ístmico 1:65, de Pindar.

6. “Seus joelhos fraquejaram pela última vez, e sentiu que sua alma começava a descer ao Hades sombrio para ir fazer companhia aos companheiros mortos”. – A morte de Aquiles, mitologia grega.

Veja outras acepções da palavra “alma” no Greek-English Lexicon, de Liddell & Scott.

Ao clicar no link indicado ele deverá remeter ao verbete psykhé (ψυχή). Caso esteja lendo o texto deste artigo na tela do computador, se o verbete não aparecer, com o botão direito do mouse copie o endereço e “cole” o mesmo diretamente no navegador e aperte enter.

De maneira semelhante aos primitivos hebreus, os gregos concebiam o mundo subterrâneo dos mortos como um lugar indesejável. Mas, ao contrário dos primeiros, que esperavam apenas uma terra sombria, triste e caótica, o Hades da mitologia grega era descrito como um local terrível para as almas:

“Na mitologia clássica grega, os rios do Hades são designados segundo os tormentos que aguardam os condenados: Aqueronte, o rio das dores; Cocito, o rio dos gemidos e das lamentações; Estige, o rio gélido dos horrores e dos juramentos inquebrantáveis; Flegetonte, o rio das chamas inextinguíveis; e Lete, o rio do esquecimento”. – O Inferno na Arte: a Paisagem, de Sérgio Rizo, Revista Estética e Semiótica, Vol. 3, nº 2 (2013).

Sobre esse cenário desolador do Hades, disse o guerreiro Aquiles, personagem da Ilíada:

“Ora, a certeza que adquiri é que no Hades realmente se encontram as almas e imagens dos vivos, privados, porém, de seu alento”. – Ilíada 23:103, 104, de Homero.

O estado debilitante dessas almas pode ser descrito da seguinte maneira:

“A ψυχή [alma] é considerada como um sopro de vida. Por ter esta conotação, a ψυχή transmite a ideia de fôlego, respiração, que o homem exala pela boca ou pelas narinas e deixa de exalar quando morre (caso muito parecido ocorre com o homem desmaiado, embora ainda não esteja morto, Ilíada, 467). Ainda por esta conotação, a ψυχή assemelha-se a uma sombra (σκιά) do homem morto, dado que tanto ψυχή quanto σκιά não tem forma, parecem uma fumaça, como fantasmas (φάντασμαι). Por assemelhar-se a uma sombra, a ψυχή pode ainda transmitir a ideia de imagem (εἴδωλον; εἰκών). Com estas características a ψυχή é imaterial e não tem energia, só pode se comunicar com os vivos nos sonhos (que são, por sua própria constituição, semelhantes à ψυχή) ou quando nutridas com sangue (αἷμα) quente”. – A Honra, a Glória e a Morte na Ilíada e na Odisséia (2009), de Antônio Pádua Pacheco, Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, pp. 92, 93.

Almas que aparecem feito fantasmas

“O aparecimento de fantasmas dos falecidos, mesmo os de entes queridos, raramente foi considerado uma experiência bem-vinda. Supõe-se que os mortos permaneçam no seu próprio mundo e não se espera que eles ultrapassem a barreira do mundo dos vivos. Quando tal evento acontecia, certamente era um sinal de algo terrivelmente errado, e aqueles que experimentavam um encontro espiritual queriam dar atenção ao problema a fim de que o fantasma retornasse ao seu lugar apropriado. Este entendimento foi tão prevalecente que histórias de fantasmas podem ser encontradas, com temas muito similares, nas antigas culturas da Mesopotâmia, Grécia, Roma, China e Índia, bem como em regiões da Mesoamérica e nas terras célticas da Irlanda e Escócia. Fantasmas também são descritos na Bíblia de uma maneira muito semelhante à descrição feita nos antigos escritos romanos”. – Ancient History Encyclopedia, Ghosts in the Ancient World (2014), de Joshua J. Mark.

O que foi dito acima pode ser confirmado no Novo Testamento. Por exemplo, quando os apóstolos estavam em um barco à noite e viram na escuridão a figura de um homem andando sobre as águas vindo na direção deles, sem saberem que se tratava de Jesus tiveram a seguinte reação:

“E os discípulos, vendo-o andando sobre o mar, assustaram-se, dizendo: ‘É um fantasma! [em grego: φάντασμα (phantasma)*] E gritaram com medo”. – Mateus 14:26, Almeida.

E depois que Jesus morreu e foi ressuscitado, numa determinada ocasião os discípulos estavam numa sala fechada quando, de repente, Jesus se materializou na frente deles. A reação dos presentes foi a mesma da outra ocasião:

“Mas, visto que estavam apavorados e tinham ficado amedrontados, imaginavam ver um espírito”. – Lucas 24:37.

* Em uma obra do historiador judeu Flávio Josefo, que escrevia em grego, ao se referir ao anjo que apareceu para a mãe de Sansão, foi dito o seguinte: “Quando sua esposa estava sozinha, uma aparição [phantasma] foi vista por ela: era um anjo de Deus que tinha aparência de um jovem alto e bonito, e ele trouxe para ela a boa notícia de que teria um filho, nascido pela providência de Deus”. – Antiguidades Judaicas 5:276.

No mundo grego o comportamento das pessoas em geral diante das duas situações acima também não seria muito diferente. Aliás, isto é assim até hoje! Essa imagética de que ocasionalmente almas penadas escapam do mundo dos mortos, especialmente para amedrontar as pessoas, pode ser visualizada nas seguintes obras gregas:

“Eu saí do ossuário e dos portões das trevas, onde Hades habita longe dos deuses, eu Polidoro, filho de Hécuba. . . Eu implorei das forças abaixo, para encontrar uma tumba e cair nas mãos de minha mãe. Então eu terei [realizado] o desejo do meu coração; mas agora eu sairei do caminho da idosa Hécuba, porque aqui ela passa adiante do caminho dela, da proteção da tenda de Agamenon, aterrorizado pelo meu espectro [phantasma]”. – Hécuba 35:50, de Eurípedes.

O texto acima reproduz a fala do espírito de Polidoro, que apareceu em frente à tenda de Agamenon.

“E isto me deixou com muito medo; por cima de sua tumba apareceu o fantasma de Aquiles”. – Hécuba 94, de Eurípedes.

“Não é sua morte, minha senhora, que o fantasma de Aquiles exigiu dos aqueus, mas a dela”. – Hécuba 390, de Eurípedes.

“Sim, as maldições de Édipo fizeram ferver em fúria. Muito verdadeiros foram os fantasmas em minhas visões do sono, prevendo a divisão da riqueza de nosso pai!”. – Sete contra Tebas, v. 710, de Ésquilo.

“Outro, passando por um túmulo à noite, e imaginando que viu um fantasma [phantasionteís], correu para ele com lança erguida, e, quando ele a empurrou nele, exclamou: ‘Para onde você está fugindo de mim, você alma que deve morrer duas vezes?’”. – Apophthegmata Laconica (Citações de Lacônia), Provérbios Espartanos, v. 69, de Plutarco.

Phantasionteís vem de phantasía, palavra que pode significar aparecimento, aparição ou poder pelo qual um objeto é apresentado (pompa), conforme informam diversas obras.

Na literatura grega, phantasía é usada com vários significados, a exemplo de apresentação à consciência (de imediato ou pela memória, verdadeira ou ilusória); imagem visual ou aquela refletida no espelho; e outras acepções que denotam percepções dos sentidos. Tal palavra também aparece no Novo Testamento:

“Portanto, no dia seguinte, Agripa e Berenice vieram com muita pompa [phantasías] e entraram na sala de audiências, junto com os comandantes militares e também os homens eminentes da cidade, e, quando Festo deu a ordem, trouxeram Paulo”. – Atos 25:22, 23.

E como se nota no conto espartano anteriormente citado, a própria palavra “alma” (psykhé) também é utilizada com o sentido de fantasma. Abaixo outro exemplo:

“Então veio o fantasma [psykhé] da minha mãe morta, Anticleia”. – Odisseia 11:81, de Homero.

Outro termo utilizado em grego para se referir a fantasmas é εἴδωλον (eídolon), palavra que vem de eidos (forma, figura). Veja um exemplo:

“E quando ele estava dormindo pela pira do funeral, como diz o poeta, o fantasma [eídolon] de Pátroclo ficou em pé diante dele”. – Discursos 1:146, de Esquines.

Por fim, abaixo algumas definições da palavra phantasma em grego:

“Φάντασμα, ατος, (φαίηο) s.n. || visão, sonho, aparição || fantasma, espectro || aparência”. – Dicionário Grego-Português (1990), Livraria Apostolado da Imprensa, de Isidro Pereira.

“Φάντασμα, τό, (Φαντάζω) = Φάσμα, uma aparição, fantasma. . . também uma visão, sonho”. – Greek-English Lexicon (1883), de Liddell e Scott.

“Uma aparição (Φαντασμα), ou "fantasma," ou "espectro" de Φανταζω e que vem de Φαινω”. – Robertson's Word Pictures of the New Testament.

Em algumas situações não é possível traduzir φάντασμα por “fantasma”. É o caso, por exemplo, desse trecho abaixo:

“Mas o aparecimento [phantasma] circular do corpo [celeste] acontece porque a distância de todo [objeto] nos parece igual”. – As Vidas dos Filósofos Eminentes 10, de Diógenes Laércio.

Nesse texto de Laércio são dadas diversas explicações sobre a opinião que se tinha entre os gregos da dinâmica e funcionamento dos corpos celestes, a exemplo da lua. Neste caso, o contexto não permite traduzir φάντασμα por “fantasma”.

Sobre a expressão “alma vivente” e outras aplicações

Dentre as várias ocorrências da palavra “alma” na Bíblia, uma delas é na expressão “almas viventes”, para se referir às criaturas terrestres. Isto acontece especialmente no Antigo Testamento. Mas nem todos os tradutores vertem dessa maneira e preferem outras expressões tais como “seres vivos”, que está mais de acordo com a linguagem de hoje.

Nem a palavra “alma” sozinha é sempre apresentada nas traduções bíblicas, pois seus autores costumam omiti-la, substituindo-a por outras palavras. O mesmo fazem os que traduzem as obras gregas, exceto quando o texto se refere à alma que vai para o Hades. Mas nas citações anteriores eu procurei manter a palavra “alma” em todos os casos, a fim de demonstrar a maneira que os gregos a utilizavam.

Quando a Bíblia hebraica foi traduzida para o grego* a descrição “almas viventes” foi vertida por ψυχὴν ζῴων (psykhén zoíon), conforme está em Gênesis 1:21, que significa literalmente “alma de viventes”. E em 1 Coríntios 15:45 o apóstolo Paulo usou ψυχὴν ζῶσαν (psykhén zósan) para se referir ao primeiro homem Adão. Sobre os termos zó·san e zóion**, utilizados juntamente com psy·khén, sugiro a leitura das considerações da página do link abaixo:

http://biblehub.com/greek/2198.htm

* A Septuaginta grega foi a primeira tradução do Velho Testamento para o grego, também conhecida por “Versão dos Setenta”, feita por cerca de 70 judeus de Alexandria, a partir do século III a.C. É identificada pelo número romano LXX.

** Zóion resulta da combinação zõõ (viver) + zoé (vida), e normalmente se refere aos animais, porém há textos em que essa palavra é usada para deuses, humanos, corpos celestes e vegetais.

Mas não é comum as obras gregas chamarem os seres terrestres de “almas viventes” usando a estrutura composta psykhén zoíon, muito embora tal conceito esteja implícito em muitos textos, a exemplo daqueles que dizem que as “almas” morrem, tanto em referência aos animais quanto aos humanos. O que significa então que antes delas serem almas mortas elas são almas viventes, na Terra.

Quando os gregos queriam se referir a uma “alma vivente” eles usavam ἔμψυχα (émpsykha). Os dicionários informam que seu significado é “o que tem vida” ou “vivente”1, podendo se referir aos animais ou aos seres humanos, embora existam termos mais específicos2 para se referir a um ser vivo, como ζῷα e ζῶσαν. Mas, por conter dentro dela a palavra “alma” (ἔμψυχα), émpsykha pode ser vertida de outras maneiras, a exemplo de: “com a alma nele”3, “espírito vivente”4, “alma do todo”5, “‘almado’ ”6 , “alma”7* etc. Por isso, nas citações 5 e 6 do primeiro tópico deste artigo eu verti émpsykha por “alma vivente”**, ao invés das traduções mais usuais “criatura vivente” ou “ser vivo”.

* Ver na página 7 do PDF indicado no link.

** No grego moderno, a expressão bíblica “almas viventes” costuma ser vertida justamente por émpsykha, o que demonstra que tal palavra é um equivalente de psykhén zoíon. A ideia oposta está em ἄψυχα (ápsykha), que significa “o que não tem alma”, ou seja, coisas inanimadas. Um texto que utiliza em uma mesma sentença os dois conceitos está em Políticas 1:29, de Aristóteles, onde ele contrasta quem tem alma com o que não tem: “. . . τὰ μὲν ἄψυχα τὰ δὲ ἔμψυχα”.

De qualquer maneira, há textos na literatura grega que também fazem uso conjunto de psykhé e zóion, com suas variantes. É o caso dos exemplos abaixo, que foram citados no começo, com exceção do primeiro a seguir.

Em Epínomis 984c e 984d Platão usou a mesma combinação psykhén zoíon (ψυχὴν ζῴων), de Gênesis 1:21, mas com outro sentido, referindo-se à alma que habita nos diversos tipos de seres, conforme o que ele entendia sobre a criação do universo, ao achar que tudo teria surgido pela atuação do deus Demiurgo. Abaixo está o texto, com uma tradução literal interlinear seguida de uma versão de melhor entendimento:

E tendo produzido todas [essas criaturas], essa alma de viventes ao que parece enche o céu inteiro”.*

* Há um detalhe interessante nessa obra de Platão. Ele afirma que as estrelas, embora pareçam apenas “pontinhos” no céu, na realidade possuem tamanhos descomunais. Considerando os mitos em que ele acreditava, tal opinião foi bem correta e apenas em nosso tempo foi confirmada pela ciência.

Os textos que foram citados na parte inicial que utilizam a referida combinação com o mesmo sentido bíblico estão transcritos a seguir:

E que seja assim estabelecida [por lei] a disciplina e a nutrição das almas viventes [ζώσης ψυχῆς]”. – Leis 9:874d, de Platão.

“Que outras almas viventes [ζῴου ψυχὴ] se detém na existência dos deuses que puseram ordem no universo, e nas maiores e mais belas coisas?”. – Memorabilia (Ditos Memoráveis) 1:4.13, de Xenofonte.

“Certamente todo o cuidado deve ser tomado em nome da nossa própria cuidadora e mãe de nossos filhos, em quem está implantada a semente da qual brota uma alma vivente”. – Economia 3:2, de Aristóteles.

“E que a alma de viventes [ζῴων ψυχή], isto é, a substância das almas viventes [ἐμψύχου], é a sua essência de acordo com essa descrição, e a forma e a essência de determinado tipo de corpo”. – Metafísica, v. 1035b.15, de Aristóteles.

Nota-se que o segundo texto de Aristóteles acima citado utiliza as duas versões de “almas viventes” que foram anteriormente explicadas.

Além de émpsykha, outro exemplo de uma palavra que tem embutido nela o nome “alma”, e as traduções normalmente não evidenciam isso, pode ser visto abaixo:

“Enumerando uma a uma, as seguintes coisas devem ser necessariamente boas. . . Justiça, coragem, autodomínio, magnanimidade, magnificência e todos os outros estados de espírito, porque são virtudes da alma. Saúde, beleza e assim por diante, porque são virtudes do corpo e proporcionam muitas vantagens”. – Retórica 1:6, de Aristóteles.

A palavra magnanimidade* é a tradução de μεγαλοψυχία (megalopsykhía), que significa literalmente “grandeza de alma”, conforme pode ser visto no portal Perseus (veja também este link).

* O dicionário Caldas Aulete define magnanimidade como “grandeza de ânimo, qualidade que nos impele para tudo que é grandioso... Generosidade, bizarria, ação de homem generoso”.

O portal Perseus pertence à Universidade de Chicago. Ele é muito útil para auxiliar na tarefa de tradução ou simplesmente para verificar quais palavras foram usadas no texto original. Ao se consultar qualquer obra grega nesse portal, para saber o significado de qualquer palavra que aparece no texto basta clicar no termo escolhido que aparecerá um quadro com uma tradução dele, geralmente literal, além de informações complementares. No texto supracitado de Aristóteles, ao dar um click em μεγαλοψυχία aparecerá o significado que mencionei (“grandeza de alma”).

Para concluir, considere também o trecho abaixo, que é uma versão da tradução que se encontra no Perseus:

“A maioria dos pontos debatidos e as dificuldades que surgiram serão esclarecidas se for satisfatoriamente determinada qual é a concepção apropriada de felicidade – se ela consiste meramente em uma pessoa possuir alguma qualidade particular de espírito”. – Ética a Eudemo 1:1215a, de Aristóteles.

Ao invés de “espírito”, a palavra utilizada no texto grego original é ψυχή (“alma”). Para justificar a escolha de tradução que fizeram, os autores disseram em uma nota:

“A palavra ψυχή, usualmente vertida por ‘alma’, que não possui nenhum termo exatamente correspondente em inglês, ao passo que denota toda a vitalidade da criatura vivente, com seus fatores inconscientes de nutrição e desenvolvimento também representa os sentimentos conscientes ou as emoções e pensamentos”.

 

Fortaleza, 07 de abril de 2020

Autor: Adelmo Medeiros

 

CRÉDITO DA IMAGEM

As almas dos guerreiros de outrora no Hades sombrio

– “Caos”, Tate Museum, de George Frederic Watts (1875)

 

 

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