A FILOSOFIA GREGA INFLUENCIOU MESMO O CONCEITO DO CRISTIANISMO SOBRE IMORTALIDADE?
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ÍNDICE

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Introdução

Algumas das alegações

O que Platão e seus seguidores ensinaram

1) O corpo é mau e a alma o odeia

2) Não haverá ressurreição do corpo

3) A alma já existia antes da formação do corpo

4) A alma reencarna novamente em vários corpos

5) As almas dos maus reencarnam em animais irracionais

6) A alma viverá de maneira incorpórea no mundo das ideias

7) Por ser parte da Alma do Universo a alma não teve princípio

8) O homem não precisa de redenção, pois a salvação está nele mesmo

9) Por serem imortais todas as almas alcançarão a esfera celeste superior

10) Conceitos diversos do neoplatonismo e algumas das explicações propostas

O que os cristãos primitivos ensinaram

1) O corpo é valoroso e a alma o ama

2) Haverá ressurreição do corpo no Juízo Final

3) A alma não existia antes da formação do corpo

4) A alma não reencarna, mas espera a ressurreição

5) As almas dos maus não reencarnam nos animais

6) A alma sempre terá um corpo definido não importa o tipo

7) A alma teve um princípio e houve um tempo em que não existia

8) O homem precisa ser remido por Jesus Cristo para alcançar a vida eterna plena

9) A alma não é inerentemente imortal e depende de Deus para ter uma vida no céu

10) Os primeiros escritores cristãos menosprezavam o platonismo e suas explicações

Os ensinos de Orígenes e a controvérsia dos anátemas

A verdadeira influência da filosofia grega no Cristianismo

Conclusão

Lista de abreviações das traduções bíblicas utilizadas

 

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Introdução

Por imortalidade normalmente entende-se a doutrina segundo a qual a alma humana sobreviverá à morte, continuando na posse de uma existência consciente sem fim. Juntamente com a questão da existência de Deus, ela constitui a questão mais importante com a qual a filosofia tem de lidar. Pertence principalmente à psicologia racional ou à metafísica e à filosofia da religião, embora também entre em contato com outros ramos da filosofia e algumas das ciências naturais.

Enciclopédia Católica, verbete “Imortalidade”.

É muito comum religiosos que não creem na imortalidade da alma, os chamados aniquilacionistas, alegarem que o conceito acima definido entrou no Cristianismo por influência da filosofia grega, em especial o platonismo. Em apoio a isso, costumam citar determinados trechos de obras teológicas que supostamente reconheceriam o que eles alegam, ainda que normalmente tais referências bibliográficas sejam contra o aniquilacionismo e deixam evidente que ele não é um ensinamento cristão.

A influência dos gregos na igreja primitiva pode ser dividida em duas fases: (1) a contribuição helenística dentro da própria Bíblia e (2) aquilo que foi aproveitado depois pelos homens que sucederam aos apóstolos, comumente chamados de “pais da Igreja”, especialmente a partir do século III. É principalmente este segundo aspecto que será analisado aqui, pois é nele que está toda a controvérsia. A primeira influência costuma ser ignorada pelos que polemizam o assunto, considerando-a de somenos importância. Até porque é mais ou menos consenso que alguns livros bíblicos foram afetados pela maneira grega de pensar, um processo que começou no século III a.C., quando foi feita a primeira tradução do Antigo Testamento hebraico para o grego, chamada de Septuaginta ou Versão dos Setenta. De qualquer modo, é importante mencionar alguma coisa sobre como a cultura helenística se fez presente nas Escrituras Sagradas.

O primeiro ponto que chama atenção é que a versão grega da Bíblia hebraica traduziu de pronto o hebraico Sheol, o mundo dos mortos, pela palavra grega Hades, que desde os tempos homéricos refere-se à morada subterrânea das almas dos mortos. Naturalmente, isso não foi propriamente uma influência, mas apenas uma adequação, pois o Hades é claramente um conceito equivalente de Sheol. Ou seja, uma região invisível nas profundezas da Terra onde estão as almas dos falecidos, chamadas no Antigo Testamento de “sombras”.

Já o Novo Testamento é mais enfático ao apresentar relatos que podem ser relacionados com ideias gregas. É o que se nota, por exemplo, na ilustração do rico e Lázaro, onde Jesus disse que determinado homem rico morreu e foi para o Hades, um lugar que, segundo Jesus, era composto de chamas, calor e sofrimento. Por isso o rico implorou por misericórdia. Jesus apresentou o mesmo cenário de punição após a morte ao descrever a Geena ardente, o local de “fogo inextinguível” onde o “seu gusano não morre”. Jesus também afirmou que os inimigos do povo de Deus podem matar apenas o corpo do cristão, mas não a sua alma. E sem falar dos vários textos que fazem distinção entre corpo e alma, costume que praticamente não havia na época da escrita do Antigo Testamento.

Algumas das alegações

Veja o que disse um autor que escreve a favor do aniquilacionismo:

“A verdade é simplesmente esta: Assim como havia acontecido com o Judaísmo pós-bíblico, o cristianismo pós-bíblico também foi influenciado, e muito, pela filosofia grega (principalmente a de Platão). As tentativas de certos imortalistas de atenuar este fato são completamente inúteis... Muitos hoje creem com sinceridade em conceitos tais como ‘alma imortal’ ou ‘espírito imortal’. O fator atenuante no caso de tais pessoas é que elas não estão a par de quão grande foi a influência platônica na versão do cristianismo com a qual porventura estejam envolvidas. Sem falar que estão completamente mal informadas acerca do que as Escrituras dizem sobre a natureza humana. Lamentável é a postura de certos indivíduos que estão muito bem a par destas duas coisas, e ficam tentando obstinadamente negá-las (ou atenuá-las), ou, pior ainda, tentando ‘obrigar’ a Bíblia a ensinar platonismo de qualquer maneira. No caso destes, seria uma postura bem mais coerente (e bem menos passível de críticas) defender ‘sem pudor’ o neoplatonismo, como fez [o autor William Ralph] Inge”. – Citado em Obras Teológicas e de Referência Apoiam o Aniquilacionismo?

Basicamente, o trecho acima afirmou o seguinte:

1) O cristianismo após a escrita do Novo Testamento foi muito influenciado pela filosofia grega, em especial à de Platão.

2) São fúteis as tentativas de quem tenta negar que houve tal influência.  

3) As pessoas em geral só acreditam na imortalidade da alma porque não sabem que tal crença é herança do platonismo (e também porque são mal informadas sobre o que a Bíblia realmente diz).

4) Os cristãos “imortalistas” que sabem o que foi dito nos pontos anteriores são pessoas obstinadas. Ou seja, erram de propósito. Tentam negar ou atenuar os fatos bíblicos e históricos favoráveis ao aniquilacionismo. Ou pior, querem obrigar a Bíblia a ensinar o platonismo.

5) Finalmente, os referidos indivíduos que acreditam na imortalidade da alma deviam reconhecer de uma vez por todas que a base de sua crença é o neoplatonismo, e defender isto sem nenhum pudor.

A melhor maneira de verificar se tais alegações têm fundamento é ver diretamente o que os neoplatonistas ensinaram, ao invés de apenas ficar citando de maneira indiscriminada autores que mencionam o assunto, como, aliás, é o costume inveterado do autor supracitado. E depois disso examinar também a literatura cristã primitiva, para em seguida comparar o que foi ensinado pelos dois sistemas.

Informações prévias:

- Os negritos e sublinhados nas obras citadas são meus.

- As traduções da Bíblia utilizadas foram identificadas com nomenclaturas cujos significados estão informados na legenda ao final deste estudo.

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O que Platão e seus seguidores ensinaram

O discípulo mais conhecido de Sócrates foi Platão (427-347 a.C.). Ele escreveu vários livros, a exemplo de Fédon. Este é talvez sua obra mais representativa no que diz respeito ao conceito de imortalidade da alma, e por isso a mais lembrada pelos que defendem a teoria de que os cristãos aprenderam dele o que entendem por alma, embora isso não signifique necessariamente que o Fédon seja realmente lido e conhecido pelos que detratam os “imortalistas”. O nome do livro é uma referência a outro discípulo de Sócrates que o acompanhou em seu último dia de vida, antes dele ser executado por envenenamento. Ele narra os diálogos do mestre de Platão pouco antes de sua morte, sendo a alma que existe à parte do corpo o tema central dos argumentos apresentados contra a objeção de que a alma seria apenas um produto direto da matéria e que por isso deixaria de existir depois da morte do corpo. Conceito que se aproxima da concepção hilomórfica de Aristóteles, segundo a qual a alma, ainda que divina, só existe enquanto o corpo existe.

Para Platão o objetivo de se viver no mundo físico era purificar a alma através do sofrimento. Estar no corpo seria então uma maneira de punição. E esse processo não ocorria apenas na forma humana. A alma também poderia encarnar em animais inferiores ou em formas mais sublimes do éter no espaço sideral, substância considerada mais próxima da natureza espiritual.

Dentro desse contexto, a filosofia de Platão apresenta a teoria das Ideias ou das Formas, segundo a qual o homem vivencia duas realidades diferentes: a física ou sensível, que é o plano inferior experimentado pelos sentidos do corpo, e o mundo imaterial, também chamado de inteligível, pois é a esfera das ideias ou das formas conectadas à mente, que é superior e eterna, sem a existência de tempo e espaço. O que existe no universo seria então apenas uma imitação do mundo das formas ou das ideias, que é a verdadeira realidade. A diferença entre ambos é semelhante à que existe entre um objeto e a sombra que ele projeta no chão. O objeto é a forma e a sombra o efeito físico dela. O neoplatonismo ampliou essa ideia e passou a considerar que as formas são consequência direta dos pensamentos emanados da mente de Deus.

O representante mais importante do neoplatonismo é um filósofo chamado Plotino de Licópolis (204-270 d.C.), que elaborou a teoria das três hipóstases: (1) O Uno, o princípio ontológico ou primeira hipóstase,* (2) O Noûs e (3) a Alma, ou Psykhé. Não é o objetivo aqui discorrer sobre os dois primeiros conceitos, mas apenas exemplificar os pontos mais importantes sobre a alma que possam interessar à visão cristã, os quais foram extraídos da obra de Plotino chamada Enéadas.

* A palavra hipóstase é usada em cinco áreas distintas, sendo três as que interessam na presente análise: (1) na filosofia, refere-se à atribuição de existência real ao que é ficção ou abstração, (2) na retórica, é a construção ou desenvolvimento de uma ideia, e (3) na teologia, a união do Verbo com a natureza divina. Na obra de Plotino hipóstase refere-se aos três níveis distintos da realidade (Uno, Noûs e Psykhé). “Uno” refere-se ao Originador indivisível do universo (Deus) e “Noûs” é a mente ou o intelecto. – Plotino: um estudo das Enéadas, de Reinholdo Aloysio Ullmann, 2ª edição, 2008, Coleção Filosofia 134, ediPUCRS; Dicionário Priberam.

1) O corpo é mau e a alma o odeia

“As preocupações dessa pessoa [o filósofo], não visam ao corpo, porém tendem, na medida do possível, a afastar-se dele para aproximar-se da alma... Nisto, por conseguinte, antes de mais nada, é que o filósofo se diferencia dos demais homens: no empenho de retirar tanto quanto possível a alma da companhia do corpo... a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la, nem a vista nem o ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a verdade... Por consequência, continuou, ao vires um homem revoltar-se no instante de morrer, não será isso prova suficiente de que não se trata de um amante da sabedoria, porém amante do corpo? Um indivíduo nessas condições, também será, possivelmente, amante do dinheiro ou da fama, se não o for de ambos ao mesmo tempo”. – Fédon, de Platão, domínio público, p. 7-11, diálogo de Símias com Sócrates, colchetes acrescentados.

Seguindo a Platão, Plotino adota um dualismo corpo-alma semelhante, com enfoque depreciativo do corpo:

“As almas, ligadas ao corpo, são aptas à punição do corpo, as almas limpas são as que já não atraem em si mesmas qualquer vestígio do corpo, pelo seu próprio ser, pois ficam fora da esfera corporal. Livre do corpo, não contendo nada de corpo - onde a Essência está, e o Ser, e o Divino dentro da Divindade, entre Aqueles, dentro daquilo, tal alma deve estar”. – Quarta Enéada, Tratado III, seção 24.

“É a nossa fraqueza que leva à dúvida nestas questões; O corpo obscurece a verdade, mas Lá [no mundo das ideias] está tudo claro e separado”. – Quarta Enéada, Tratado IX, seção 5, colchetes acrescentados.

No entanto, gradualmente Plotino amenizou essa visão por destacar algumas qualidades do corpo. Por exemplo, ele disse que “a alma também torna belos os corpos, porque ela é divina e uma parte do belo”. Há duas hipóteses que explicam o motivo de Plotino ter suavizado o dualismo platônico. A primeira é a influência dos cristãos, que nessa época já tinham começado a escrever sobre filosofia e interagir com seus adeptos, porém com motivação proselitista, como foi o caso de Orígenes, que será considerado a partir da próxima seção do presente estudo. Além disso, o mestre de Plotino, um homem chamado Amônio, nasceu em uma família cristã, porém em certa altura da vida abandonou o Cristianismo em prol da filosofia grega.

Outro fator importante na formação da obra de Plotino é que ele escrevia contra o gnosticismo. Os gnósticos achavam que o corpo era produto do demiurgo mau, e desprezavam o corpo em práticas de ascetismo. Ao que parece, para Plotino as tendências pecaminosas não eram motivo suficiente para o corpo ser completamente mau, pois para Plotino “quem acusa o todo, olhando as partes, faz uma acusação absurda, porque é preciso examinar as partes em relação ao todo... e examinar o todo sem firmar-se em pequenos detalhes”. Sendo assim, a desvinculação do corpo a que Plotino se referia não era o desprezo do corpo em si, mas daquilo de mau que ele poderia levar a pessoa a fazer, que com a força das virtudes poderia ser controlado (o que faz lembrar a ação do Espírito Santo). Sobre isto ele diz:

“Para Platão, inequivocamente, existem duas ordens distintas de virtude, e a cívica não é suficiente para a semelhança com Deus: ‘A semelhança com Deus’, diz ele, ‘é uma fuga dos caminhos e das coisas deste mundo’. Ao lidar com as qualidades da boa Cidadania, ele não usa o termo simples Virtude, mas acrescenta a palavra distintiva cívica, e em outro lugar ele declara todas as virtudes sem exceção para serem as purificações... Visto que a Alma é má por ela estar entremeada ao corpo, e por compartilhar os estados do corpo e pensar os pensamentos do corpo, então seria bom, que ela estivesse possuída de virtude, se ela tiver jogado fora os modos do corpo e tenha se dedicado ao seu próprio Ato... Por tal disposição na Alma, tornando-se assim intelectiva e imune à paixão, não seria errado chamar de Semelhança com Deus, pois o Divino também é puro e o Ato Divino é tal que a Semelhança com Ele é Sabedoria”. – Enéada I, Tratado II, seção 3.

As virtudes mencionadas por Plotino são de natureza cívica, sendo elas: sabedoria, coragem, temperança e justiça, conforme preconizadas por Platão, e de posse dessas qualidades o homem se tornaria senhor de si próprio. – República, IV, 428b-444a.

2) Não haverá ressurreição do corpo

Uma das evidências de que Plotino conhecia a pregação cristã, e pode ter sido até certo ponto influenciado* por ela, é que ele menciona a esperança da ressurreição do corpo, mas a repudia:

“Até agora temos encontrado aqueles que, com a evidência da força e da resistência, identificam o corpo como o ser real e encontram a certeza da verdade nos fantasmas que nos alcançam através dos sentidos. Resumindo, aqueles que, como sonhadores, consideram a invenção das coisas de sua visão adormecida. A esfera do sentido, a Alma em seu sono. Porque toda a Alma que está no corpo está adormecida e o verdadeiro levantar não é corporal, mas [despertar] do corpo. Em qualquer movimento que leva o corpo com ela, não há mais do que uma passagem de um sono para outro sono, de uma cama para outra cama. O verdadeiro despertar ou ressurreição é [livrar-se] de coisas corpóreas, pois estas, pertencentes ao Tipo diretamente oposto à Alma, apresentam-lhe o que se opõe diretamente à sua existência essencial: a sua origem, o fluxo e o perecimento delas são a advertência da sua exclusão do Tipo cujo Ser é o Autêntico”. – Terceira Enéada, Tratado VI, seção 6, colchetes acrescentados.

* A linguagem que Plotino usa às vezes guarda alguma semelhança com determinadas expressões bíblicas, como quando ele disse que “nossa pátria é aquela de onde viemos e lá está nosso Pai”. – Enéada I, 6, 8, 21-28; compare com Filipenses 3:20 e Tiago 1:17.

Ainda que de maneira irônica, o autor a seguir apresenta o contraste entre as visões cristã e neoplatonista sobre o que acontece depois da morte:

“Pela época de Justiniano [482-565 d.C.], o cristianismo se tornara tão imperial e urbano, e se afastara tanto da equidade que se referia aos neoplatônicos como ‘pagãos’. Os pagãos pensavam que se poderia ter corpos diferentes em vidas diferentes, mas que, no último dia de libertação, permaneceria apenas a alma que, por ser perfeita, tinha formato esférico. Eles [os platonistas] visualizavam gotas de água perdendo sua identidade e se fundindo novamente ao oceano. Visto que tudo se fundia de volta no ‘Naquele e o mesmo’, a distinção entre uma esfera perfeita e outra não era crítica - de fato, eles achavam que essa distinção era matematicamente impossível. Justiniano queria fazer essa distinção para ajudar Deus a mandar alguns para o céu e outros para o inferno. Por isso, ele insistiu que a ressurreição seria na carne. Que se manteria o corpo da vida atual depois da morte, não obstante todos os fogos do inferno. Justiniano, entretanto, negligenciou especificar se a ‘forma atual’ se referia à forma do corpo do nascimento, ou a da morte, ou de alguma idade intermediária!”. – As Onze Imagens do Tempo: A Física, a Filosofia e a Política das Crenças do Tempo, 2003, de C. K. Raju, Sage Publications, colchetes acrescentados.

Como se nota, imputa-se aos neoplatonistas a ideia de que a alma não possui uma forma corporal depois da morte, mas assemelha-se a uma esfera, o formato que os gregos consideravam o mais perfeito (este assunto será retomando na seção sobre Orígenes). Além disso, os traços da individualidade da pessoa se fundiriam com as características de uma Alma maior, de certa forma representativa do próprio Deus. Estes conceitos serão vistos novamente mais adiante.

3) A alma já existia antes da existência do corpo

Na concepção neoplatonista, cada alma individual tem sua origem numa realidade maior ou superior, na qual todas as almas estão aparentemente diluídas em uma coisa só:

“No Cosmos intelectual reside a Essência Autêntica, com o Princípio-Intelectual [Mente Divina] como o mais nobre de seu conteúdo, mas também contendo almas, já que toda alma nesta esfera inferior veio de lá: esse é o mundo dos espíritos desencarnados enquanto que ao nosso mundo pertencem aqueles que entraram no corpo e sofreram divisão corporal. Lá, o Princípio-Intelectual é um todo concentrado - nada dele distinguido ou dividido - e naquele cosmos de unidade todas as almas são concentradas também, sem discriminação espacial”. – Quarta Enéada, Tratado I, seção 1; compare com João 17:10, 11.

Tal conceito era bastante comum no mundo grego, mas com algumas variações de acordo com a corrente de pensamento. Alguns achavam que as características físicas e cognitivas do corpo eram adquiridas pela alma à medida que ela descia do nível mais superior até chegar à Terra. Por exemplo, de acordo com o filósofo romano Ambrósio Teodósio Macróbio (390-430 d.C.), que já foi erroneamente tido por cristão, de Saturno a alma adquire a razão e o entendimento (logistikon e theoretikon), de Júpiter a força de ação (praktikon), de Marte, o espírito ousado (thymikon) e do Sol o senso de percepção e imaginação (aisthetkon e phantastikon). Sobre isso diz uma obra de referência:

A descida da alma através das divisões do cosmos. A importância das divisões significativas no sistema cosmológico relaciona-se à descida da alma para o mundo material durante o processo de gênesis. Embora a lua esteja no limite dos mundos materiais e celestes, em um sistema que enfatiza as sete esferas planetárias, a lua talvez tenha menor importância no processo de descida da alma. Em cada um dos mundos através dos quais a alma desce no seu caminho rumo à encarnação, ela se apropria de algum elemento de sua composição mortal. Se as esferas planetárias são a divisão primária, a alma adquire algumas características da norma legisladora dos sistemas planetários quando ela passa por suas esferas de influência”. – Reinos Celestiais e Realidades Terrenas em Religiões Anteriores Tardias, 2004, Cambridge University Press, de Ra'anan S. Boustan e Annette Yoshiko Reed (editores).

Seguindo a proposta de Platão, Plotino apresenta uma ligação causal entre a origem da alma intelectual e a alma encarnada individual, afirmando que toda alma no mundo sensível (material) possui uma alma intelectual correspondente no mundo das ideias. E para ele o processo de individualização das almas não termina no nível das espécies, mas continua descendo em uma escala ontológica, variando em níveis de declinação da hipóstase alma. Em tal visão, o corpo terrestre seria o último dessa gradação decrescente no processo de encarnação, que passa primeiro pelas esferas superiores, o que implicaria dizer que os seres vivos que nelas habitam são também superiores, e quanto mais alta for a esfera menos denso e material é o ser, de modo que no início dessa jornada os seres eram espirituais antes de se tornarem físicos e orgânicos. A alma deseja então retornar ao estágio elevado a que antes pertencia. Deixar de ser uma parte para voltar a ser o todo, imergida na Alma do Universo. Deste modo, “cada alma permanece uma e, entretanto, todas no seu conjunto são uma só” (En. IV, Tratado III, sec. 5) – Plotino sobre a Aparência do Tempo e o Mundo do Sentido: Uma Pantomima, 2016, Routledge, de Deepa Majumdar, pp. 51, 52.

Plotino disse ainda: “Várias considerações explicam porque as Almas ao emanarem do Intelectual se dirigem primeiro para as regiões celestes. Os céus, como a porção mais nobre do espaço sensível, faria fronteira com o menos exaltado do Intelectual, e serão, portanto, animados [ou “almados”] primeiro, os primeiros a participarem como sendo os mais aptos, enquanto que é da terra que está na extremidade dessa progressão, menos dotada para a participação, o mais distante do não incorporado”. – Enéada IV, Tratato III, seção 17.

4) A alma reencarna novamente em vários corpos

Da mesma maneira que os platonistas clássicos, Plotino também acreditava na transmigração da alma ao longo das eras, num processo de reencarnação, também conhecido por palingenesia ou metempsicose:

“A alma, ainda presa e arrastada, contará tudo o que o homem fez e sentiu. Mas com a morte aparecerá, com o passar do tempo, as memórias das vidas vividas antes, alguns dos eventos da vida mais recente sendo desprezados como triviais. À medida que ela se afasta do corpo, ela reaviva as coisas esquecidas no estado corpóreo, e se ela passar de um corpo para outro sucessivamente, vai contar sobre os acontecimentos da vida descartada, e tratará como presente a que ela acaba de deixar, e vai se lembrar muito da existência anterior. Mas com o lapso de tempo virá ao esquecimento de muitas coisas que eram mero acréscimo”. – Quarta Enéada, Tratado III, seção 27.

“Assim, um homem [na reencarnação], uma vez governante, será escravo porque abusou do seu poder e porque a queda é para o seu bem futuro. Aqueles que têm dinheiro serão pobres - e a boa pobreza não é obstáculo. Aqueles que mataram injustamente serão, por sua vez, mortos injustamente em relação ao assassino, mas justamente quanto à vítima, e aqueles que estão a sofrer serão lançados no caminho daqueles que administram o merecido tratamento. Não é por acidente que um homem se torna um escravo. Ninguém é um prisioneiro por acaso. Cada ultraje corporal tem sua causa devida. O que o homem fez uma vez é o que agora sofre. Um homem que assassina sua mãe se tornará mulher e será assassinado por um filho. Um homem que faz uma mulher errar vai se tornar uma mulher para ser injustiçado”. – Terceira Enéada, Tratado III, seção 13, colchetes acrescentados.

Com exceção do ponto a seguir, a visão plotiniana sobre a reencarnação é exatamente o que ensina atualmente o espiritismo kardecista.

5) As almas dos maus reencarnam em animais irracionais

Não obstante Plotino ter afirmado na Primeira Enéada que quando a alma se dirige para um animal ela não participa dele diretamente, numa espécie de incorporação parcial (En. I, Trat. I, seç. 11), na terceira Eneáda ele foi muito claro ao dizer que as almas se encarnam também nos animais, como forma de punição de quem foi mau e não praticou as virtudes cívicas:

“É sobretudo desta Alma que lemos ‘Toda a Alma tem cuidado dos desumanos’ - embora as várias Almas assim se preocupem em seu próprio grau e modo. A passagem continua – ‘A alma passa por todo o céu em formas que variam com a variedade do lugar’ - a forma sensível, a forma de raciocínio, até mesmo a forma vegetativa - e isso significa que em cada ‘lugar’ a fase da alma dominante leva a cabo seus próprios fins enquanto o descanso, não o atual que existe lá, estiver inativo... Aqueles que mantiveram o nível humano se tornarão homens uma vez mais. Aqueles que viveram inteiramente de acordo com os sentidos tornam-se animais - correspondendo em espécie ao temperamento particular da vida [que tiveram] - animais ferozes, quando [na vida anterior] a sensualidade foi acompanhada por uma certa dose de espírito, animais gulosos e lascivos quando tudo foi apetite e saciedade do apetite. Aqueles que em seus prazeres nem sequer viveram pela sensação, mas seguiram seu caminho em uma grosseria torpe tornam-se meras coisas crescentes, pois essa letargia é todo o ato do vegetativo, e tais homens têm estado ocupados se arranjando. Aqueles, assim entendemos, que de outra forma [foram] imaculados, amando a canção, tornam-se animais vocais. Reis que governaram irracionalmente, mas sem outro vício, tornam-se águias. Os fúteis e visionários inconstantes que sempre se elevam em direção ao céu, se tornam pássaros de alta direção. A observância da virtude cívica e secular torna [a alma] homem novamente, ou onde o mérito é menos marcado [a torna] um dos animais de tendência comunal, a exemplo de uma abelha ou algo parecido”. – Terceira Enéada, Tratado IV, seção 2, colchetes acrescentados.

“Mas como essa alma superior pode ter percepção sensorial?... Se as coisas materiais existissem lá [no mundo superior], a alma as perceberia; O Homem no Intelectual, o Homem como alma intelectual, estaria ciente do [aspecto] terrestre. É assim que o Homem secundário, cópia do Homem no Intelectual, contém os Princípios-Motivos em cópia... Quanto à separação da terceira vida e do terceiro Homem do corpo, então, se o segundo também se afasta - obviamente o Acima não perdendo o controle sobre os dois, como se diz, ocupará o mesmo lugar. Sem dúvida, parece estranho que uma alma que tenha sido o Princípio-Razão de um homem venha a ocupar o corpo de um animal: mas a alma sempre foi tudo, e em tempos diferentes será isto ou aquilo. Pura, ainda não caída no mal, a alma escolhe o homem e se torna o homem, pois este é o superior, e ele produz o mais elevado. Produz também os seres ainda mais nobres, os Celestiais [Daimons, em grego], que são de uma Forma com a alma que faz o Homem: mais alto ainda permanece aquele Homem mais inteiramente do grau Celestial, quase um deus, reproduzindo Deus, um ser Celestial estreitamente ligado a Deus como o homem é para o homem. Pois aquele Ser em que o homem se desenvolve não é para ser chamado de deus. Permanece a diferença que distingue as almas, todas da mesma raça que elas são. Isto está tomando o ‘Celestial’ [Daimon] no sentido de Platão. Quando uma alma, que no estado humano foi assim ligada, escolhe a natureza animal e desce para ela, está emanando o Princípio-Razão - necessariamente nela - desse animal em particular: este por ser inferior ela o possuiu e a atividade vai para o inferior”. – Sexta Enéada, Tratado VII, seção 6.

6) A alma viverá de maneira incorpórea no mundo das ideias

A ideia platonista de alma sem formato humano começa, de certa maneira, pelo próprio símbolo grego para representá-la: a borboleta. Quando este inseto sai do casulo (o “corpo morto”) vira um ser alado com outra forma que bate suas asas para longe de onde saiu. Não é por acaso, então, que a palavra “alma” (ψυχή) era uma das utilizadas para se referir à borboleta. A outra era φάλαινα (phálaina). Então foi uma consequência “lógica” os neoplatonistas chegarem à conclusão que a alma no mundo superior poderia ter outro formato diferente da crisálida corporal de onde partiu. Visto que o aspecto esférico era considerado o mais perfeito pelos gregos, em algum momento eles imaginaram que a alma seria uma esfera:

“Para fazer isso, ele usa formas eternas para construir um mundo que é inteligente como ele, o que significa que o mundo tem uma alma. O mundo também tem uma forma perfeita, que é esférica (uma visão que poderia ter influenciado o relato de Orígenes da ressurreição, como veremos). Platão até especula que a cabeça é o nosso corpo mais divino porque também tem uma forma basicamente esférica (Timaeus, 44d)”. – Jesus Cristo, Deus Eterno: Carne Celestial e Metafísica da Matéria, 2012, de Stephen H. Webb, Oxford University Press, p. 29.

Sobre a ênfase que davam à esfericidade, disse Plotino:

“Existe um menor poder da Alma, o mais próximo da Terra, e este está entrelaçado em todo o universo: uma outra fase possui sensação, enquanto outra inclui a Razão que se refere aos objetos da sensação: esta fase superior se mantém Esférica, voltada para o Alto, mas pairando sobre a Alma menor e dando-lhe uma efluência que a torna mais intensamente vital”. – Segunda Enéada, Tratado II, seção 3.

“Traga esta visão realmente diante de sua visão, para que haja em sua mente a resplandecente representação de uma esfera, uma imagem pulsante que mantém as coisas desse universo em movimento, e algumas em repouso. Mantenha esta esfera diante de você, e dela imagine outra, uma esfera desprovida de magnitude e de diferenças espaciais. Expulsa o seu sentido inato da Matéria, cuidando não apenas de atenuá-la: invoca a Deus, o criador da esfera cuja imagem agora você possui, e rogue a Ele para entrar nela. E que Ele venha trazendo Seu próprio Universo com todos os Deuses que nele habitam - Aquele que é o único Deus e todos os deuses, onde cada um é tudo, misturando-se em uma unidade, distinta em poderes, mas todos um só deus em virtude daquele Poder divino de muitas facetas”. – Quinta Enéada, Tratado VIII, seção 9.

“E as almas que alcançam o mais elevado? Destas almas superiores, algumas vivem no mundo do Sentido, outras acima dele; e aquelas no mundo do Sentido habitam o Sol ou outro dos corpos planetários. As outras ocupam a Esfera fixa [acima da planetária], ocupando o lugar que mereceram por terem vivido aqui a vida superior da razão”. – Terceira Enéada, Tratado IV, seção 6.

No entanto, é importante lembrar que essa concepção não existia lá nos tempos homéricos. Para os gregos a forma fantasmagórica que descia para o Hades depois da morte tinha basicamente uma aparência humana, ainda que não fosse dotada de elementos físicos, a exemplo de carne e sangue, e nem precisasse respirar. Portanto, quando os gregos mais antigos diziam que a alma é incorpórea era apenas no sentido de que não tinha um corpo humano, porém tinha uma forma delimitada feita de algum material desconhecido e invisível à percepção humana, sendo ela uma imagem do corpo que tinha antes. Para os platonistas não era assim. A alma não apenas é desprovida de algum tipo de corpo com aparência humana (asomatos), mas também não possui qualquer elemento tangível ou palpável no mundo para onde ela vai. Ou seja, é a imaterialidade absoluta. Daí o conceito de que a alma é a existência da mente à parte do corpo, mente que existe por si só sem nenhum suporte físico ou de outra natureza.

Pelo mesmo motivo, os platonistas também achavam que coisas abstratas a exemplo de cores e formas geométricas existiam literalmente no mundo das ideias, mas sem ocupar um espaço físico, definição que, aliás, nem faz muito sentido nessa realidade abstrata. Tal conceito estranho era contradito por outras correntes filosóficas, a exemplo dos pitagóricos, que achavam que tudo deveria ocupar um lugar no espaço. Aristóteles, por sua vez, tinha uma visão mais materialista e biológica da alma. Ele acreditava no domínio imaterial, porém rejeitou a teoria das formas de Platão, visto que considerava a forma e a matéria como sendo elementos sempre coexistentes, pois um não existiria sem o outro. A opinião de Aristóteles é chamada de teoria hilomórfica, palavra que vem do grego hyle (matéria).

7) Por ser parte da Alma do Universo a alma não teve princípio

Para os platonistas, as almas e o mundo superior sempre existiram, da mesma maneira que o universo sempre existiu, numa paridade correspondente, ainda que elementos individuais possam aparecer ou se dissolver.

“Que cada alma se recorde, então, ao princípio da verdade que a alma é a autora de todos os seres vivos, que tem soprado a vida em todos eles, seja lá do que for alimentada, se pela terra ou pelo mar, por todas as criaturas do ar ou as estrelas divinas no céu. É a criadora do sol. Ela mesma formou e ordenou este vasto céu e conduziu todo esse movimento rítmico. E é um princípio distinto de tudo aquilo que resulta em lei, movimento e vida, e ela deve, necessariamente, ser mais honrada do que eles, porque eles se reúnem ou se dissolvem à medida que a alma lhes traz vida ou os abandona, mas a alma, já que nunca pode se abandonar, é um ser eterno. Essa grande alma deve ficar retratada diante de outra alma... E o sistema celestial, movido agora em movimento infinito pela alma que o conduz em sabedoria, tornou-se uma coisa viva e abençoada... Cada vida separada vive pela alma inteira, onipresente na semelhança do pai formador, inteira em unidade e inteira em toda variedade difusa. Pelo poder da alma, o múltiplo e diverso sistema celestial é uma unidade. Através da alma, este universo é um Deus; e o sol é um Deus, porque está ‘almado’[animado]... Nossa própria alma é dessa mesma natureza Ideal, de modo a considerá-la purificada, livre de todos os acréscimos, a fim de reconhecer em nós mesmos o mesmo valor que encontramos no estado da alma, honrosa acima de tudo que é corporal”. – Quinta Enéada, Tratado I, seção 2.

“Admirando o mundo dos sentidos à medida que olhamos para a sua vastidão e beleza e a ordem da sua marcha eterna, pensando nos deuses que nele se encontram, vistos e escondidos, nos espíritos celestiais e em toda a vida animal e vegetal, Seu arquétipo, para a esfera ainda mais autêntica: devemos contemplar todas as coisas como membros do Intelectual - eterno por direito próprio, investido de uma consciência e vida auto-sustentáveis - e, presidindo a todos estes, a Inteligência e A sabedoria inacessível. Se de um, então claramente o sistema intelectual será análogo ao do universo da esfera-sentido com a qual circunda a esfera, a mais exterior, dominando tudo - a Primeira [no intelectual] envolverá o esquema inteiro e será um Cosmos [ou Arquétipo] Intelectual. E como no nosso universo as esferas não estão vazias, mas a primeira esfera é espessa com estrelas e nenhuma sem elas, assim, no Cosmos Intelectual, esses princípios de Movimento envolverão uma multidão de Seres, e esse mundo será o reino da Maior realidade”. – Quinta Enéada, Tratado I, seção 4.

“Tudo em movimento tem necessariamente um objeto para o qual avança. Mas uma vez que o Supremo não pode ter tal objeto, não podemos atribuir um movimento a ele: qualquer coisa que surgir após ele só pode ser produzido como conseqüência de sua auto-intenção infalível. E, é claro, não ousamos falar de geração no tempo, lidando como estamos com seres eternos. Onde falamos de origem em tal referência, é no sentido, meramente, de causa e subordinação: não se deve considerar que a origem do Supremo implica qualquer movimento nele, pois o Ser resultar do movimento seria não um segundo princípio, mas um terceiro. O Movimento seria a segunda hipóstase”. – Quinta Enéada, Tratado I, seção 6.

Sobre essas ideias filosóficas de eternidade absoluta, um autor cristão do século II disse o seguinte:

“Alguns dos filósofos do Pórtico dizem que não há Deus. Ou, se houver, dizem que Ele não cuida de ninguém senão de Si mesmo. E nessas visões a estultícia de Epicuro e Crisipo foi geralmente estabelecida. E outros dizem que todas as coisas são produzidas sem agência externa, e que o mundo é incriado, e que a natureza é eterna. E têm se atrevido a dar que não há nenhuma providência de Deus em tudo, mas afirmam que Deus é apenas a consciência de cada homem. E outros afirmam novamente que o espírito que permeia todas as coisas é Deus. Mas Platão e os da sua escola reconhecem que Deus é incriado, e o Pai e Criador de todas as coisas. Mas então eles sustentam que a matéria, assim como Deus, é incriada, e afirmam que ela é coetânea com Deus. Mas se Deus é incriado e a matéria incriada, Deus não é mais, de acordo com os platônicos, o Criador de todas as coisas, nem, na medida em que suas opiniões mantêm, é a monarquia de Deus estabelecida. E ainda, como Deus, porque Ele é incriado, também é inalterável. Assim, se a matéria também fosse incriada, também seria inalterável e igual a Deus. Pois o que é criado é mutável e alterável, mas o que é incriado é imutável e inalterável. E que grande coisa é se Deus fez o mundo de materiais existentes? Até mesmo um artista humano, quando recebe material de alguém, faz dele o que lhe agrada. Mas o poder de Deus se manifesta nisto, que das coisas que não são, Ele faz o que quer, assim como a doação da vida e do movimento é a prerrogativa de não outro senão somente Deus. Pois mesmo o homem faz de fato uma imagem, mas a razão, a respiração ou o sentimento, ele não pode dar ao que fez. Mas Deus tem esta propriedade em excesso do que o homem pode fazer, em que Ele faz uma obra, dotada de razão, vida, sensação. Como, portanto, em todos estes aspectos, Deus é mais poderoso do que o homem, assim também nisto. Que das coisas que não são Ele cria e criou as coisas que são, e tudo o que Lhe agrada, como Ele deseja”. – Teófilo de Antioquia (115-181 d.C.), Para Autólico, Livro II, cap. 4.

Para os neoplatonistas, e também para os gregos em geral, não fazia sentido a ideia de que seres ou coisas foram criados a partir do nada. Para eles era necessário que coisas e seres eternos (e invisíveis) existissem para que fosse possível a existência de tudo que é material e perecível, inclusive a vida orgânica. Teófilo de Antioquia, por sua vez, seguindo o espírito da Bíblia, contradisse esse conceito filosófico e asseverou que só um ser é Eterno (Deus), e que Ele criou a partir do nada todas as criaturas vivas e os elementos físicos do universo.

8) O homem não precisa de redenção, pois a salvação está nele mesmo

Para Plotino, a salvação não necessita de ajuda externa, bastando apenas o esforço individual. Visto que a primeira hipóstase está em todas as coisas e criaturas do universo, é preciso apenas o desejo de estar com o Divino para alcançá-lo efetivamente.

“Ela se manterá acima de todas as paixões e afetos. Os prazeres necessários e toda a atividade dos sentidos ela empregará somente para medicamento e atenuação a fim de que seu trabalho seja impedido. A dor pode combater, mas, falhando a cura, ela vai suportar mansamente e aliviá-la, recusando-se a aceitá-la. Toda ação apaixonada verificará: a supressão estará completa se isso for possível, mas na pior das hipóteses a Alma nunca irá se incendiar, mas manterá o involuntário e descontrolado longe dos seus arredores, e o raro e o fraco que estão nisso. A alma não tem nada a temer, embora, sem dúvida, o involuntário também tenha algum poder: o medo, portanto, deve cessar, exceto na medida em que é puramente uma admoestação. Que o desejo que possa existir nunca pode ser para o mal. Mesmo o alimento e a bebida necessários para a restauração estarão fora da atenção da Alma, e não menos o apetite sexual: ou se esse desejo deve existir, ele se voltará para as necessidades reais da natureza e estará inteiramente sob controle. Ou se algum movimento descontrolado ocorre, não alcançará mais além do que a imaginação, não será mais do que uma fantasia passageira. Em tudo isto não há pecado - há apenas matéria da disciplina - mas nossa preocupação não é meramente ser sem pecado, mas ser Deus. Enquanto existir tal ação involuntária, a natureza é dupla, Deus e Demi-Deus, ou melhor, Deus em associação com a natureza de um poder inferior. Quando todo o involuntário é suprimido, há Deus sem mescla, um Ser Divino daqueles que seguem o Primeiro. Pois, nesta altura, o homem é o próprio ser que veio do Supremo... Nesse princípio, a Suprema Retidão da Alma é a de dirigir seu Ato para o Princípio-Intelectual. Sua Restrição (a Sofrósina)* é sua flexão interna para o Princípio-Intelectual; Sua Força é o seu ser impassível à semelhança daquilo para o qual está posto o olhar, cuja natureza compõe uma impassibilidade que a Alma adquire pela virtude e deve adquirir se não estiver à mercê de todo estado que surge em seu companheiro menos nobre [o corpo]”. – Primeira Enéada, Tratado II, seções 5 e 6, colchetes acrescentados.

* Personagem mitológica grega que representava a prudência e o autocontrole.

9) Por serem imortais todas as almas alcançarão a esfera celeste superior

A combinação do ponto anterior com a ideia da transmigração das almas, conforme o mérito de vidas passadas, implica inevitavelmente na ideia de uma salvação universal, pois um dia todos alcançarão o Divino e não haverá mais necessidade de reencarnação. Este conceito é chamado de apocatástase, e já existia desde Heráclito (540-480 a.C.). Os estoicos também acreditavam nisso, como subproduto da ideia de retorno cíclico do cosmo ao fogo universal (ekpýrôsis).

Segundo dizem, o escritor Orígenes adaptou a apocatástase ao ensino cristão, por dizer que a bondade de Deus não permitiria que os condenados ficassem para sempre no inferno (Hades / Geena). Porém o universalismo de Orígenes não incluía o processo de transmigração, conforme será visto em uma seção posterior.

Para mais informações veja “Plotino: um estudo das Enéadas”, de Reinholdo Aloysio Ullmann, 2ª edição, 2008, Coleção Filosofia 134, ediPUCRS, pp. 114, 115.

10) Conceitos diversos do neoplatonismo e algumas das explicações propostas

Para concluir esta seção, veja a seguir mais algumas coisas escritas por Plotino:

“É o corpóreo, então, que exige a magnitude: as Formas-Ideias do corpo são Ideias instaladas na Massa. Mas essas Ideias entram, não na Magnitude em si, mas em algum assunto que foi trazido à Magnitude. Pois supor que elas entram na Magnitude e não na Matéria - é representá-las como sendo ou sem Magnitude e sem Existência-Real [e, portanto, indistinguíveis da Matéria] ou não Formas-Ideais [adaptadas ao corpo], mas os Princípios-Razão [completamente Removidos] cuja esfera só poderia ser a Alma. Nesse caso, não haveria tal coisa como corpo (isto é, ao invés de Formas-Ideais, que moldassem a Matéria e assim produziriam o corpo, haveria apenas Princípios-Razão habitando remotamente na Alma)”. – Sexta Enéada, Tratado IV, seção 12.

“Em nosso estado atual - parte do nosso ser é empurrado para baixo pelo corpo, como se pudesse ter os pés debaixo da água com todo o resto do corpo intocado - nós o carregamos - o nós lá no alto – a parte intacta e, nisso, seguramos através de nosso próprio centro para o centro de todos os centros, assim como os centros dos grandes círculos de uma esfera coincidem com o da esfera à qual todos pertencem. Assim, estamos seguros. Se esses círculos fossem materiais e não espirituais, a ligação com os centros seria local. Eles estariam à sua volta em algum ponto distante: uma vez que as almas são do Intelectual, e o Supremo é ainda mais elevado, entendemos que o contato é obtido de outro modo, ou seja, por aqueles poderes que ligam o agente intelectual ao objeto intelectual. Tanto mais que o intelecto apreende o objeto intelectual pelo caminho da semelhança, da identidade, no vínculo seguro da parentela. A massa material não pode misturar-se com outra massa material: os seres não engessados não estão sob essa limitação corporal. Sua separação é apenas a da alteridade, da diferenciação. Na ausência de alteridade, são semelhantes entre si”.  – Sexta Enéada, Tratado IX, seção 8

“Quanto aos particulares, eles são considerados em si mesmos infinitos, mas ficam em número [definido] ao serem abraçados pela unidade [total]. Esta parte inferior da Alma não impede que o resto esteja inteiramente na esfera superior: de fato, o que chamamos de parte inferior é apenas uma imagem da Alma: não que ela esteja isolada da Alma. É como o reflexo no espelho, dependendo do original que está fora dele”. – Sexta Enéada, Tratado II, seção 22, colchetes acrescentados.

“O que é conhecido como Matéria é entendida como uma certa base, um recipiente das Ideias-Forma. Assim, todos seguem o mesmo caminho. Mas a partida começa com a tentativa de estabelecer o que este tipo básico é em si mesmo, e como é um receptor e do que. Para uma certa escola, considera-se que os seres reais são exclusivamente as formas-corpos. A existência é limitada aos corpos. Há uma única Matéria, a matéria subjacente aos constituintes primitivos do Universo. A existência não é nada além desta Matéria. Tudo é alguma modificação disto. Os elementos do Universo são simplesmente esta Matéria em uma certa condição. A escola tem mesmo a audácia de impor a Matéria sobre os seres divinos, de modo que, finalmente, o próprio Deus torna-se um modo de Matéria - e isso, embora o torne corpóreo, o descreve como um corpo vazio de qualidade, exceto uma magnitude. Outra escola o torna incorpóreo: entre estes, nem todos sustentam a teoria de uma só Matéria. Alguns deles enquanto sustentam a Matéria única, na qual a primeira escola crê (o fundamento das formas corporais) admitem outra, uma prévia, existente na esfera divina, a base das Ideias lá e dos Seres incorpóreos”. – Segunda Enéada, Tratado IV, seção 1.

“O homem superior, acima desta esfera, surge da alma mais divina, uma alma possuída por uma humanidade mais nobre e percepções mais brilhantes. Esta deve ser a definição do Homem de Platão [‘O Homem é Alma’], onde a adição ‘A Alma como corpo’ marca a distinção entre a alma que usa o corpo diretamente e a alma, posicionada acima, que toca o corpo somente através desse intermediário”. – Sexta Enéada, Tratado VII, seção 5.

Um cristão que está acostumado a ler apenas a Bíblia e algumas obras teológicas dificilmente se sentirá confortável com as explicações de Plotino, pois elas não são familiares e muito menos esclarecedoras. E note que a maior parte delas é exatamente assim! É preciso esforço para encontrar em Plotino similaridades com as doutrinas cristãs. Isto por si só é uma evidência que o neoplatonismo muito pouco tem a ver com o Cristianismo. Se há explicações ou ideias equivalentes é por mero acaso, ou porque Plotino adaptou algumas coisas que ouviu dos cristãos. E esta é uma teoria bastante plausível, visto que seu mestre em filosofia era um ex-cristão.

Outra possibilidade que não deve ser descartada é que o próprio Deus induziu os filósofos a escrever determinadas verdades, na linguagem deles, ainda que a maior parte de seus ensinos não refletisse a revelação bíblica. Isto é razoável porque, de acordo com o Novo Testamento, “Deus não é parcial, mas, em cada nação, o homem que o teme e que faz a justiça lhe é aceitável”. O que está de acordo com o ensino apostólico segundo o qual quando as “pessoas das nações, que não têm lei, fazem por natureza as coisas da lei [de Deus], tais pessoas, embora não tenham lei, são uma lei para si mesmas”. E mesmo quando alguém talvez não seja o melhor exemplo de virtude, Deus pode usá-lo como instrumento de informação. Foi o caso, por exemplo, do faraó Neco, contra o qual o bom rei Josias, de Israel, se posicionou em uma batalha estrangeira. Neco o advertiu que estava com Deus e que Josias devia se retirar. Mas Josias não seguiu o conselho do rei pagão e pagou com a própria vida, mesmo sendo fiel seguidor da lei de Deus. O motivo? A Bíblia responde: Josias “não escutou as palavras de Neco provenientes da boca de Deus”. Logo, é prudente os cristãos ficarem atentos às palavras dos “faraós”, pois alguma coisa pode ser aproveitável. – Atos 10:34, 35; Romanos 2:14; 2 Crônicas 35:20-22, TNM, colchetes acrescentados.

E no que diz respeito aos ensinos do neoplatonismo, o mais notório é que o Cristianismo antigo ensinou precisamente o contrário de tudo o que foi visto anteriormente, conforme você poderá constatar na seção seguinte. O único ponto seguramente em comum com Plotino foi a crença de que o homem possui uma alma que sobrevive à morte. Mesmo assim a equivalência não é perfeita, pois para o Cristianismo a alma é imortal apenas no sentido de que ela permanece viva depois que o corpo deixa de funcionar devido à morte. O que significa que se a pessoa não tiver tomado as medidas necessárias, que envolvem a fé em Jesus e as obras cristãs, ela poderá perder a vida eterna no futuro julgamento final de Deus.

Portanto, a semelhança do Cristianismo com o platonismo, sobre o que acontece depois da morte, é bastante tênue e limitada.

O que os cristãos primitivos ensinaram

Para atestar o que foi dito na conclusão da seção anterior e sedimentar bem a diferença entre os dois sistemas, considere agora o que os primeiros cristãos realmente ensinavam.

1) O corpo é valoroso e a alma o ama

Porque aquilo que é devidamente impuro, o é por causa da sua maldade. Sendo assim, a natureza do corpo não é impura, pois na medida em que é de natureza corporal, não possui vício, que é o princípio gerador da impureza.

Orígenes, Contra Celso, Livro III, cap. 42.

Conforme considerado, na visão de Platão o corpo é visto numa perspectiva altamente depreciativa, não tendo ele nada de bom para a alma, por isso a morte seria a própria libertação do cárcere do corpo. Isto está em nítido contraste com a visão bíblica de que o corpo é um presente de Deus e veículo de felicidade. Ainda que ele tenha imperfeições devido ao pecado, pela ação do Espírito de Deus o uso que se faz dele pode ser melhorado a cada dia. Note os exemplos a seguir:

“Para o homem não existe nada melhor do que comer, beber e encontrar prazer em seu trabalho. E vi que isso também vem da mão de Deus”. – Eclesiastes 2:24, NVI.

“A terra de certo homem rico produziu bem. Conseqüentemente, ele começou a raciocinar no seu íntimo, dizendo: ‘Que farei, agora que não tenho onde ajuntar as minhas safras?’ De modo que ele disse: ‘Farei o seguinte: Derrubarei os meus celeiros e construirei maiores, e ali ajuntarei todos os meus cereais e todas as minhas coisas boas; e direi à minha alma: ‘Alma, tens muitas coisas boas acumuladas para muitos anos; folga, come, bebe, regala-te’.” – Lucas 12:16-19, TNM.

“Contudo, não ficou sem testemunho: [Deus] mostrou sua bondade, dando-lhes chuva do céu e colheitas no tempo certo, concedendo-lhes sustento com fartura e enchendo de alegria os seus corações”. – Atos 14:17, Nova Versão Internacional, colchetes acrescentados.

“Vocês foram comprados por alto preço. Portanto, glorifiquem a Deus com o corpo de vocês”. – 1 Coríntios 6:20, NVI.

Contudo, não se pode negar que o corpo possui limitações para os anseios da alma, visto que “todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus” (Romanos 3:23). Por mais que o ser humano se esforce para alcançar os elevados valores divinos, as tendências carnais sempre representarão um empecilho, em maior ou menor grau. É o que talvez possamos chamar de dualismo moderado, quando se analisa a situação à maneira grega. Ou seja, o corpo é valorizado, porém dentro de uma perspectiva realista, conforme aludido pelo apóstolo Pedro:

“Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11, TNM.

Paulo foi ainda mais enfático ao descrever o problema:

“Pois eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não mora nada bom... Quando quero fazer o que é direito, está presente em mim aquilo que é mau. Eu realmente me deleito na lei de Deus segundo o homem que sou no íntimo, mas observo em meus membros outra lei guerreando contra a lei da minha mente e levando-me cativo à lei do pecado que está nos meus membros. Homem miserável que eu sou! Quem me resgatará do corpo que é submetido a esta morte? Graças a Deus, por intermédio de Jesus Cristo, nosso Senhor! Assim, pois, com a mente, eu mesmo sou escravo da lei de Deus, mas com a minha carne, escravo da lei do pecado”. – Romanos 7:18, 21-25, ibid.

Com tais palavras Paulo não estava dizendo que o corpo deva ser odiado por causa do pecado que há nele. A descrição relativamente hiperbólica tem por objetivo apenas ressaltar o contraste entre o corpo e aquilo que a pessoa é no íntimo (mente, espírito, alma). O próprio Paulo indicou em outra ocasião que o corpo deve ser amado pela alma:

“Nenhum homem jamais odiou a sua própria carne; mas ele a alimenta e acalenta, assim como também o Cristo faz com a congregação”. – Efésio 5:29, ibid.

Algumas décadas depois, um cristão que muito provavelmente conheceu pessoalmente o apóstolo Paulo disse algo com sentido semelhante:

“A alma invisível é guardada pelo corpo visível, e os cristãos são conhecidos por realmente estarem no mundo, mas sua piedade permanece invisível. A carne odeia a alma, e guerreia contra ela, mas ela mesma não está sofrendo nenhuma injúria, porque está guardada de usufruir deleites; o mundo também odeia os cristãos, mas não é injuriado de volta, porque eles renunciam os deleites [mundanos]. A alma ama a carne que a odeia, e [ama também] os membros [do corpo]; da mesma maneira os cristãos amam aqueles que os odeiam”. – Carta de Matetes a Diogneto, cap. 6, c. 125 d.C., colchetes acrescentados.

Devido ao desejo de que a hipótese segundo a qual o conceito cristão sobre alma foi corrompido pelo platonismo, alguns enxergaram dualismo grego nesse trecho de Matetes.  Porém tal conclusão é absolutamente errônea, pois se o leitor bem notar o sentido do ódio (ou seja, quem odeia quem) está invertido. A alma não odeia o corpo, mas o ama!  O corpo é que odeia a alma. E isso faz todo o sentido, já que na ressurreição dos mortos os dois serão reunidos novamente para nunca mais se separarem, conforme será visto mais adiante. Sobre esse dualismo invertido, disse determinado comentário:

“O texto [do capítulo 6 de Matetes] reflete uma real unidade entre o corpo e a alma. Quebra-se, ou, ao menos, dilui-se uma concepção dualista do homem em que a alma, realidade transcendente, se oporia ao corpo”. – Revista Eletrônica Espaço Teológico, vol. 5, nº 7, jan/jun, 2011, pp. 08-14, colchetes acrescentados.

2) Haverá ressurreição do corpo no Juízo Final

Que ninguém, entretanto, suspeite que, devido ao nosso discurso, fazemos parte daqueles que são chamados de cristãos, mas que rejeitaram a doutrina da ressurreição conforme ensinada nas Escrituras!

Orígenes, Contra Celso, Livro V, cap. 22.

Foi visto que Plotino fez uma clara alusão à esperança cristã de ressurreição dos mortos e a rejeitou em seguida, dizendo que tal expectativa não tem nenhum valor. E isso não foi exclusividade de Plotino. A ideia de falecidos retornarem com o corpo que antes possuíam sempre foi ridicularizada pelas escolas gregas (Atos 17:16-34). A descrença dos gregos na ressurreição do corpo é outro nítido contraste em relação ao que a Bíblia apresenta:

“Muitos daqueles que dormem no pó da terra despertarão, uns para uma vida eterna, outros para a ignomínia, a infâmia eterna”. – Daniel 12:2, AM.

“E eis que o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo; e tremeu a terra, e fenderam-se as pedras; E abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos que dormiam foram ressuscitados”. – Mateus 27:51, 52, Almeida Corrigida e Revisada Fiel.

“Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos, ouvirão a sua voz e sairão: os que fizeram o bem, para a ressurreição da vida; e os que praticaram o mal, para a ressurreição do juízo”. – João 5:28, 29, Sociedade Bíblica Britânica.

Naturalmente, a saída dos mortos de seus túmulos não seria na forma de zumbis putrefatos dignos de um filme de terror. Os versículos bíblicos estão dizendo apenas que tais seres humanos seriam restaurados à vida terrena, para em seguida serem transformados em criaturas celestiais, conforme o apóstolo Paulo explicou em 1 Coríntios 15:42-57. Os ressuscitados terão então uma ressurreição semelhante à de Jesus, que em um momento aparecia na forma material e em outro se tornava invisível, ao mudar para o estado espiritual. O escritor cristão Orígenes explicou essa natureza dupla do corpo ressuscitado de Jesus da seguinte maneira:

“Após a Sua ressurreição, ele existiu em um corpo intermediário, por assim dizer, entre a densidade material que Ele tinha antes de seus sofrimentos [na cruz], e a aparência de uma alma despojada de tal corpo. E foi, portanto, devido a isso quando os seus discípulos estavam reunidos, e Tomé com eles, Jesus apareceu em um recinto fechado e ficou no meio deles, e disse: ‘Paz seja convosco’. Então disse a Tomé para colocar o dedo [nas suas feridas] etc. E no Evangelho de Lucas também, enquanto Simão e Cléopas conversavam entre si a respeito de tudo o que lhes acontecera, Jesus ‘aproximou-se e foi com eles. E seus olhos foram fechados, para que eles não o reconhecessem’. E Ele disse-lhes: ‘Que tipo de conversa é essa que falais uns com os outros enquanto andais?’. E quando seus olhos foram abertos, e eles O reconheceram, então a Escritura diz em palavras expressas: ‘E Ele desapareceu da vista deles’.”. – Contra Celso, Livro II, cap. 62, colchetes acrescentados. 

O cenário mais provável na ressurreição geral dos mortos é que Deus criará réplicas idênticas (ou melhoradas) dos corpos que existiram, e colocará neles as suas respectivas almas, que até então estarão aguardando por isso no Hades. Até porque na maioria dos casos já não existirá qualquer vestígio dos corpos originais, pois eles já terão virado pó. Outros cristãos antigos explicaram a ressurreição da seguinte maneira:

“Não é porque [sabemos que] a separação da alma dos membros do corpo e a dissolução das suas partes não interrompem a continuidade da vida que devemos desanimar da ressurreição... nem é a felicidade da alma [quando está] separada do corpo... porque não se pode dizer que o homem existe quando o corpo é dissolvido... embora a alma continue por si mesma... E, como isso se segue necessariamente, deve haver uma ressurreição dos corpos mortos, mesmo que inteiramente dissolvidos, e os mesmos homens devem ser formados de novo, uma vez que a lei da natureza ordena o fim não de modo absoluto, nem como o fim de algum homem qualquer, mas dos mesmos homens que passaram pela vida anterior. Mas é impossível que os mesmos homens sejam reconstituídos a menos que os mesmos corpos sejam restaurados às mesmas almas”. – Sobre a ressurreição dos mortos, Atenágoras de Atenas (?-180 d.C.), caps. 16 e 25, colchetes acrescentados.

“Portanto, formamos a crença de que [nossos] corpos também se levantam novamente... como um grão descascado é semeado, e, germinando pelo comando de Deus, seu Criador, eleva-se novamente, vestido e glorioso... Assim [se conclui disto que] nós não temos entretido uma crença vã na ressurreição do corpo. Porém, embora [o corpo] seja dissolvido no tempo determinado, por causa da desobediência primitiva, ele é colocado, por assim dizer, no cadinho da terra, para ser reformado novamente. Não como este corpo corruptível, mas puro, e não mais sujeito a decadência, de modo que a cada corpo sua própria alma será restaurada. E quando for vestido com isto, não experimentará tristeza, mas se regozijará, continuando permanentemente em um estado de pureza”. – Irineu de Lyon (120-202 d.C.), Fragmento 12, colchetes acrescentados.

No caso da alma do cristão, a espera pode ocorrer no próprio céu. – Lucas 16:22; Apocalipse 20:4.

3) A alma não existia antes da formação do corpo

Mas com respeito à [origem da] alma, [não está definido] se ela surge do sêmen por um processo de traducianismo [ou seja, da combinação entre as almas do pai e da mãe], de modo que se considere que a racionalidade, ou sua substância, foi colocada nas partículas seminais do próprio corpo ou se [a alma] tem outro começo. E esse começo, seja ele por nascimento ou não, seja concedido ao corpo por algo externo ou não, não está definido com suficiente clareza no ensinamento da Igreja.

Orígenes, Dos Princípios, prefácio, seção 5.

Como se infere da citação acima, já houve alguma discussão na igreja primitiva sobre se a alma realmente existe anteriormente ao corpo. Essa observação de Orígenes é pertinente, uma vez que há textos bíblicos que parecem apontar para o entendimento de que a alma é criada antes do corpo, a exemplo deste de Jeremias:

“Antes mesmo de te formar no ventre materno, Eu te escolhi; antes que viesses ao mundo, Eu te separei e te designei para a missão de profeta para as nações!” – Jeremias 1:5, KJA.

E some-se a isso o fato de que muitos judeus da época de Cristo acreditavam abertamente na preexistência da alma. Entre os cristãos, certamente a figura que mais se destacou por defender tal conceito foi Orígenes, que é considerado o primeiro teólogo da Igreja e um dos mais prolíficos, pois escreveu mais de 800 livros, dentre os quais um comentário para cada um de todos os livros da Bíblia. Mas é preciso contextualizar a crença de Orígenes sobre a existência prévia da alma.

Ele acreditava que a história da queda relatada em Gênesis, sobre quando Adão foi expulso do paraíso, era uma alegoria que representava o rebaixamento da humanidade inteira para os domínios terrestres. O que significa, na prática, que todas as pessoas foram banidas do paraíso celeste e suas almas foram destinadas a se transformarem em seres humanos. Tal situação seria gradualmente revertida e atingiria seu clímax na ressurreição geral dos mortos, após o Juízo Final, quando a humanidade voltaria ao paraíso de Deus.

Realmente esse entendimento de que o paraíso é uma região celestial está presente em toda a história judaico-cristã, desde a época de Moisés, ainda que a Bíblia não apresente essa informação tão explicitamente e a deixe apenas subentendida, como quando Gênesis diz que na época em que não havia nenhuma vegetação na Terra Adão foi criado e levado para o jardim do Éden. Sendo assim, a recompensa da vida eterna nos céus seria, na verdade, um retorno às origens do homem, e não simplesmente uma mudança de residência decidida de “última hora” por Deus. Caso queira ler uma pesquisa onde se aprofundou mais essa questão, entre no texto indicado a seguir:

Onde ficava o Jardim do Éden?

Com esse quadro em mente, veja outras afirmações de Orígenes sobre o conceito que ele ensinou sobre a preexistência da alma:

“Mas a terceira ordem das criaturas racionais é a dos que são considerados adequados por Deus para abastecer a raça humana, isto é, as almas dos homens, que assumiram a ordem dos anjos, em conseqüência de seu progresso moral”. – Dos Princípios, Livro I, cap. 8, seção 4.

“O Apóstolo diz: ‘Toda a criação geme e sofre em dores de parto até agora’. . . ‘A criação foi sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a submeteu para a esperança’, para que os corpos possam estar na vaidade e fazer as coisas do corpo”. – Comentário ao Evangelho de João, Livro I, capítulo 16.

“O apóstolo também, na Epístola aos Efésios, empregou a mesma linguagem, dizendo: ‘Quem nos escolheu antes da fundação do mundo’. . .  sou da opinião que, como o fim e a consumação dos santos serão naquelas eras que não são vistas, e são eternas, devemos supor, por uma contemplação de todo esse fim, que as criaturas racionais também tiveram um começo semelhante. E se tiveram um começo tal como o fim para o qual esperam, elas existiram sem dúvida desde o princípio naquelas eras... E, se é assim, houve uma descida de uma condição superior para uma inferior, não só por parte das almas que mereciam a mudança pela variedade de seus movimentos, mas também pelas almas que, para servir ao mundo inteiro, foram trazidas daquelas esferas superiores e invisíveis para essas inferiores e visíveis, embora contra sua vontade – ‘Porque a criatura foi submetida à vaidade, não de bom grado, mas por causa daquele que a sujeitou em esperança’... aquelas almas que, por causa de seus excessivos defeitos mentais, necessitavam de corpos mais densos e mais sólidos. E para o bem daqueles para quem esse arranjo era necessário, este mundo visível também foi chamado à existência... A esperança da liberdade é entretida por toda a criação - de ser libertada da corrupção da escravidão - quando os filhos de Deus, que caíram ou foram dispersos, serão reunidos em um só grupo, ou quando tiverem cumprido seus outros deveres neste mundo, que são conhecidos somente por Deus, o Arranjador de todas as coisas. De fato, devemos supor que o mundo foi criado de tal qualidade e capacidade que contém não só todas aquelas almas que se determinou que deveriam ser treinadas neste mundo, mas também todos aqueles poderes que estavam preparados para atender e servir, e ajudá-las... cada um tem a razão em si mesmo, por que ele foi colocado nessa ou naquela posição na vida”. – Dos Princípios, Livro III, cap. 5, seção 4.

“As palavras [de João Batista] ‘Eu não o conheço’ podem ter referência ao período anterior à existência física. . . ‘Havia um homem enviado de Deus, cujo nome era João’. [João 1: 6] Aquele que é enviado, é enviado de algum lugar para algum lugar, e o aluno cuidadoso, portanto, perguntará de que lugar João foi enviado e para onde. O ‘para onde’ é bastante claro em face da história. Ele foi enviado para Israel e para aqueles que estavam dispostos a ouvi-lo quando ele estava no deserto da Judeia e batizando às margens do Jordão. De acordo com o sentido mais profundo, no entanto, ele foi enviado para o mundo, sendo o mundo entendido como este lugar terreno onde os homens estão. E o estudante cuidadoso terá isso em vista ao perguntar de onde João foi enviado. Examinando as palavras mais de perto, ele talvez declare que, como está escrito sobre Adão [Gênesis 3:23], ‘E o Senhor o enviou do paraíso de delícias até a terra, da qual foi tomado’, assim também João foi enviado, do céu ou do Paraíso, ou de algum outro lugar para este lugar na Terra”. – ibid., Livro II, caps. 23 e 24, colchetes acrescentados.

“Isto também, penso eu, deve ser consultado em seguida, a saber, quais são os motivos pelos quais uma alma humana é impelida ao mesmo tempo pelos bons espíritos e pelos maus: suspeito que os motivos sejam anteriores ao nascimento corporal do indivíduo, conforme João Batista demonstrou por ter exultado no útero de sua mãe, quando a voz da saudação de Maria chegou aos ouvidos de sua mãe Elisabete, e como Jeremias, o profeta, declara, que era conhecido por Deus antes mesmo de ser formado no ventre de sua mãe, e antes de nascer foi santificado por ele, e ainda menino recebeu a graça da profecia”. – Dos Princípios, Livro III, cap. 3, seção 20.

“Como, portanto, quando as Escrituras são cuidadosamente examinadas em relação a Jacó e Esaú, não se considera injustiça da parte de Deus que se diga, que antes deles nascerem, ou fizessem algo nesta vida, ‘o mais velho serviria ao mais novo’. E, como se descobre que não é injustiça, que, mesmo no ventre, Jacó suplantou seu irmão, se acharmos que ele era dignamente amado por Deus, de acordo com os méritos de sua vida anterior, de modo a merecer ser preferido antes de seu irmão. Assim também é com relação às criaturas celestiais, se notarmos que a diversidade não era a condição original da criatura, mas que, devido às causas que existiram anteriormente, um arranjo diferente é preparado pelo Criador para cada um em proporção ao grau de seu mérito...  No entanto, alguns dos que possuem maior mérito recebem ordem para sofrer com os outros para o cumprimento do estado do mundo, e para o cumprimento do dever para com as criaturas de menor grau, para que, por isso, elas próprias possam ser participantes na tolerância do Criador, segundo as palavras do apóstolo: ‘Porque a criatura foi sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que sujeitou a mesma na esperança’. Mantendo em vista, então, o sentimento expresso pelo apóstolo, quando, falando sobre o nascimento de Esaú e Jacó, ele diz: ‘Existe injustiça com Deus? Deus não permita!’, eu acho correto que este mesmo sentimento seja cuidadosamente aplicado para o caso de todas as outras criaturas, porque, como anteriormente observamos, a justiça do Criador deveria aparecer em tudo. E isso, parece-me, será visto mais claramente, se cada um, seja de seres celestiais ou terrestres ou infernais [que estão no Hades], seja dito ter as causas de sua diversidade em si mesmos e antecedente ao seu nascimento corporal. Pois todas as coisas foram criadas pela Palavra de Deus e pela Sua Sabedoria, e foram ordenadas por Sua Justiça. E, pela graça de Sua compaixão, Ele providencia a todos os homens, e encoraja a todos o uso de quaisquer remédios que possam levar à sua cura, e os incita à salvação”. – Dos Princípios, Livro II, cap. 9, seção 7, colchetes acrescentados. 

No entanto, não obstante todos os argumentos apresentados por Orígenes, os responsáveis pela ortodoxia cristã na Igreja não viram elementos fortes o suficientes para recepcionar a crença na preexistência da alma, e firmaram-se na opinião de que a alma é criada no mesmo momento em que o corpo é gerado no útero materno.

De qualquer maneira, aparentemente foi mantida a concepção de que o paraíso edênico realmente não ficava na Terra, porém a descendência de Adão e Eva nunca esteve lá, pois esses filhos só foram gerados depois da grande Queda (expressão corriqueira sobre o evento que em si já denota algo que veio de cima para baixo).

4) A alma não reencarna, mas espera a ressurreição

Nesta passagem [sobre João Batista], não me parece que, pela parte de Elias, se falou de alma, para que eu não caia no dogma da transmigração [das almas], que é estranho à igreja de Deus, e não é proferido pelos apóstolos, nem em qualquer lugar estabelecido nas Escrituras.

Orígenes, Comentário ao Evangelho de Mateus, Livro XIII, cap. 1. 

A reencarnação nunca fez parte do ensinamento da Igreja primitiva, não obstante alguns judeus acreditarem realmente que a alma podia reencarnar em novos corpos. E este conceito ainda é mantido pelos judeus cabalistas. 

Há várias pessoas na Internet, especialmente nos meios espíritas, afirmando que Orígenes cria na reencarnação e que, por isso, já houve tal crença na Igreja. Por conseguinte, acham que Orígenes acreditava que João Batista era o profeta Elias reencarnado. Entretanto, tais conclusões estão erradas, pois, conforme visto no ponto anterior, a “vida passada” a que Orígenes, às vezes, fazia alusão não se refere a uma vida terrena prévia, mas sim à vida nos domínios celestes. Além disso, ele mesmo escreveu diversas vezes contra o conceito da transmigração das almas, também chamado de metempsicose ou metensomatose (na verdade, há uma pequena diferença entre estes dois termos). Veja abaixo dois exemplos: 

“Quanto ao primeiro ponto, alguém poderia dizer que João não sabia que ele era Elias. Esta será a explicação daqueles que acham em nossa passagem um apoio à sua doutrina de transcorporação, como se a alma se revestisse de um novo corpo e não se lembrasse muito de suas vidas anteriores. Esses pensadores também irão apontar que alguns dos judeus concordaram com esta doutrina quando falaram sobre o Salvador como se Ele fosse um dos profetas antigos, sem, contudo, ressuscitar do túmulo, mas vindo de Seu nascimento... A pergunta que os sacerdotes e levitas fizeram a João não tinha a intenção de revelar se o mesmo espírito estava em ambos, mas se João era aquele mesmo Elias que foi levado e que agora aparecera sem que tenha nascido, de acordo com a expectativa dos judeus (os emissários talvez não soubessem sobre o nascimento de João). E para tal pergunta ele naturalmente respondeu ‘eu não sou’, porque aquele que se chamava João não era Elias, que foi levado, e não mudou o seu corpo para a sua aparência presente... conforme eu mostrei, se os emissários sabiam que João era filho de Zacarias e Isabel, e se mais ainda os mensageiros, por serem homens da raça sacerdotal, não poderiam ignorar a maneira notável como seu parente Zacarias gerou seu Filho, então qual poderia ser o significado de sua pergunta ‘Você é Elias?’. Não haviam lido eles que Elias tinha sido levado ao céu, e não esperavam eles que ele aparecesse?”. – Comentário ao Evangelho de João, Livro VI, cap. 4.

“Alguns poderiam dizer, no entanto, que Herodes e algumas das pessoas possuíam o falso dogma da transmigração das almas para os corpos, pelo que pensavam que o anterior João havia aparecido novamente por um novo nascimento”. – Comentário ao Evangelho de Mateus, Livro X, cap. 20.

De acordo com a Bíblia, Elias foi arrebatado ao céu depois que encerrou sua atividade de profeta e comissionou Eliseu para dar prosseguimento a ela. Com isso, a tradição judaico-cristã considera que Elias não experimentou a morte. Neste caso, ele continuaria vivo qual ser humano na época de Jesus, porém em outros domínios fora da Terra.

Sendo assim, caso os judeus que perguntaram sobre a identidade de João não soubessem que ele havia nascido uns trinta anos antes, o mais provável é que os indagadores tinham em mente a história do referido arrebatamento físico, imaginando que João poderia ser o profeta Elias que tinha voltado de onde estava. Por outro lado, se eles soubessem que João tinha nascido na época deles, então realmente eles poderiam ter em mente o conceito da transmigração das almas, e que Elias havia morrido algum tempo depois de seu arrebatamento. Orígenes comenta em seus escritos esses dois entendimentos, e favorece o primeiro, dizendo que João Batista foi chamado de “Elias” apenas em sentido figurado, pois seu modo de agir tinha sido conforme o “poder e o espírito” de Elias. – 2 Reis 2:9-18.

5) As almas dos  maus não reencarnam  nos animais

Pensamos que esses pontos de vista não são de modo algum admitidos, que alguns não são necessários desenvolver e manter, por exemplo, de que as almas descem a tal ponto em rebaixamento que elas esquecem sua natureza e dignidade racionais e sucumbem à condição dos animais irracionais, grandes ou pequenos. E, em apoio dessas afirmações, eles geralmente citam algumas supostas afirmações das Escrituras... como, por exemplo... sobre a jumenta de Balaão, quando Deus lhe abriu a boca, e o animal de carga respondeu com voz humana, repreendendo a loucura do profeta. Todas essas afirmações não só não a recebemos, por serem contrárias à nossa crença, mas como as refutamos e rejeitamos. Após a refutação e a rejeição de tais opiniões perversas, devemos mostrar, no devido tempo e lugar, como as passagens que citam das Sagradas Escrituras devem ser entendidas.

Orígenes, Dos Princípios, Livro I, cap. 8, seção 4.

Antes da morte redentora de Jesus Cristo todos os que morriam desciam invariavelmente ao Hades, o mundo subterrâneo. Mas hoje em dia, conforme se infere de alguns textos bíblicos, os cristãos que morrem não vão mais para o mundo dos mortos e aguardam a ressurreição do corpo físico em um lugar melhor, no qual o próprio Jesus se faz presente. No entanto, os ímpios e os que não têm fé continuam sendo acomodados no Hades à medida que vão morrendo, provavelmente em setores que estão de acordo com o que merecem, com mais ou menos provações. 

De modo que é completamente estranho às Escrituras Sagradas a ideia de que os maus, ou menos virtuosos, seriam punidos por suas almas reencarnarem em animais, ou mesmo em plantas. Os antigos autores cristãos se posicionaram contra esse ensinamento de que a alma pode reencarnar em seres irracionais. Orígenes também fez outras declarações sobre tal crença abjeta, a exemplo destas: 

“A menos que, de fato, por essas afirmações, Celso queira dizer obscuramente que todas as almas são da mesma espécie (pois em muitos casos ele gostaria de adotar ideias platônicas), e que não há diferença entre a alma de um homem e as almas de formigas e abelhas, e que é o ato de alguém que faria descer a alma da abóbada do céu e fazer com que ela entre não apenas em um corpo humano, mas também no corpo de um animal. Os cristãos, no entanto, não darão o seu consentimento a tais opiniões: pois já foram instruídos antes que a alma humana foi criada à imagem de Deus, e vêem que é impossível que uma natureza formada na imagem divina tenha seus traços (originais) totalmente obliterados, e assuma outros, formados depois conforme a semelhança de animais irracionais que eu não conheço”. – Contra Celso, Livro IV, cap. 83.

“E, de acordo com a lei de Moisés, está escrito sobre certas coisas: ‘Deveis lançá-las aos cães’, [Êxodo 22:31] e era um assunto de cuidado para o Espírito Santo dar instruções sobre certos alimentos que deveriam ser deixados para os cães. Deixemos os outros, então, que são estranhos à doutrina da Igreja, assumirem que as almas dos corpos dos homens passem para os corpos de cachorros, de acordo com seu grau variável de maldade. Mas nós, que não encontramos esse ensino na Escritura divina, afirmamos que a condição mais racional muda para uma outra irracional apenas [na mente] em conseqüência de um comportamento muito preguiçoso e negligente [por parte da própria pessoa]”. – Comentário ao Evangelho de Mateus, Livro XI, cap. 17, colchetes acrescentados.

6) A alma sempre terá um corpo definido não importa o tipo

E se alguém imagina que, no final [dos tempos], o que é material, isto é, a natureza corporal, será inteiramente destruída, ele não pode de maneira alguma conhecer minha visão, sobre como seres tão numerosos e poderosos poderiam viver e existir sem corpos, visto que isto é um atributo somente da natureza divina - isto é, do Pai, do Filho e do Espírito Santo - que pode existir sem qualquer substância material, e sem participar em qualquer grau de um acessório corporal. Outra pessoa talvez poderá dizer que, no final, toda substância corporal será tão pura e refinada que será como o éter, e de uma pureza e clareza celestial. No entanto, reconhecemos que só Deus sabe com certeza como as coisas serão e também aqueles que são seus amigos através de Cristo e do Espírito Santo.

Orígenes, Dos Princípios, Livro I, cap. 6, seção 4.

Na Bíblia, em especial no Antigo Testamento, o ser humano é chamado de alma vivente. De modo que quando um israelita morria era correto dizer que uma alma tinha morrido (a literatura grega também possui esse uso materialista da palavra “alma”, porém em menor escala). Por outro lado, também há na Bíblia hebraica o conceito que a pessoa depois da morte continua existindo no Seol, e de uma maneira muito semelhante ao Hades dos gregos, onde os que falecem continuam conscientes, porém em versões tênues e enfraquecidas, e ficam perambulando em um mundo sombrio, sonolento ou cheio de provações. Por isso os habitantes desse lugar são chamados no Antigo Testamento de “sombras”. O patriarca Jó acreditava que iria para essa terra deprimente depois da morte:

“Quão poucos são os meus dias! Que Deus termine e se afaste de mim, e terei um instante de alegria, antes de partir, sem retorno, para o país de trevas e sombras, para a terra escura e opaca, de confusão e negrume, onde a própria claridade é sombra”. – Jó 10:20-22, PER. 

E depois descreveu como se daria essa partida:

“O homem, nascido de mulher, é de vida curta e está empanturrado de agitação. Como a flor, ele brota e é cortado, e foge como a sombra... Apenas a sua própria carne, enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele, continuará a prantear”. – Jó 14:1, 2, 22, TNM. 

O mesmo cenário é apresentado em outros textos bíblicos, a exemplo do abaixo:

Sob a terra, as sombras tremem, as águas e seus habitantes; o Xeol patenteia-se diante dele, e sem véu está o Abadon [ou Abismo]”. – Jó 26:5, 6, MD, colchetes acrescentados.

Tal como era concebido por outros povos, a exemplo dos gregos e babilônios, os hebreus acreditavam que o Xeol, a morada das “sombras”, está debaixo da Terra, em uma profundidade tão grande que fica abaixo dos próprios oceanos. Veja mais dois textos que mencionam esse lugar:

“Pois não deixarás a minha alma no Seol, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção”. – Salmo 16:10, AREB. 

“De novo nos restituirás a vida, e das profundezas da terra nos tornarás a trazer”. – Salmo 71:20, SBB.

Pelo contexto dos textos bíblicos supracitados, nota-se que a palavra “sombras” (rephaim, em hebraico) é utilizada como sinônimo de almas dos mortos, ainda que em geral a palavra “alma”, no singular, se refira a um ser humano que vive na Terra, ou seja, uma pessoa de corpo físico. É por isso que alguns tradutores vertem rephaim por palavras tais como “almas”, “espíritos” ou “fantasmas”, a fim de transmitir logo o real significado do termo, ou seja, um ser espiritual que experimenta uma existência consciente depois da morte, porém de maneira triste e sombria. É o caso de Provérbios 21:16, como se vê na comparação entre as duas versões a seguir:

“O homem que se desvia do caminho da prudência, na assembleia das sombras repousará”. – BJ.

“Quem se extravia do caminho da prudência descansará na assembleia das almas”. – PER.

Alguns não conseguem enxergar isso na Bíblia porque, infelizmente, há tradutores que vertem o hebraico Sheol ou o grego Hades por “sepultura”, desvirtuando assim o sentido original dessas palavras.* Além do mais, o estilo literário da Bíblia permite verter a expressão “minha alma” por “eu” ou “me”. Por causa disso, há os que não aceitam que em alguns casos a palavra “alma” pode ser tomada com o sentido de alma espiritual. É o caso de quando o salmista disse que Deus não deixaria a alma dele no Seol. Mas tal objeção não se sustenta, por uma questão lógica e de semântica. Se o Seol era tido como uma região inacessível nas profundezas da Terra, é óbvio que a alma que seria retirada por Deus de lá não é um ser humano que respira oxigênio. Até porque o corpo da pessoa falecida estaria “repousando” quilômetros acima em uma sepultura na superfície terrestre.

* Embora o Sheol seja indubitavelmente um lugar inacessível nas profundezas da Terra, às vezes essa palavra é usada metaforicamente para se referir ao túmulo ou à própria morte. No entanto, é um erro traduzi-la por “sepultura” por conta desse detalhe. O ideal é transliterar sempre por “Seol”, ou “Hades”, no caso da versão grega, e deixar a critério do leitor perceber se o termo está sendo usado em sentido literal ou metafórico. Isso evitaria traduções estranhas e teologicamente erradas como esta: “Na Sepultura ele [o rico epulão] ergueu os olhos, em tormentos, e viu Abraão de longe... Por isso ele o chamou, dizendo: ‘Pai Abraão, tenha misericórdia de mim... porque estou sofrendo neste fogo intenso’.” (Lucas 16:23, 24, TNMB). Ao traduzirem Hades por “Sepultura” o sentido do texto foi desvirtuado, pois em nenhuma sepultura acontece o que foi descrito por Jesus, e ele claramente estava fazendo alusão ao mundo dos mortos e não a um corpo no cemitério.

Chega-se à mesma conclusão se o estilo bíblico for apresentado conforme a linguagem de hoje:

“Pois Tu não me abandonarás no Seol (o mundo inferior, o lugar dos mortos)”. – Salmo 16:10, AMP.

O “me” entrou no lugar de “minha alma”, porém a situação é a mesma. O local a que o salmista se refere está além do alcance de corpos físicos. Logo, esse “me” ou essa “alma” é algo de natureza não física e é uma versão consciente da própria pessoa, pois o que é colocado na sepultura não é uma pessoa, mas o corpo morto de quem foi para o Hades. Nas sepulturas não há seres vivos (pessoas), mas no Hades sim!* Por isso em algumas Bíblias o referido texto de Salmo é vertido da seguinte maneira:

“Não abandonarás minha vida no Xeol”. – Salmo 16:10, BJ.

* Ressalte-se que, devido à crença que tinham de que o Seol é uma região deprimente onde não há satisfação nem reuniões de adoração a Deus, os hebreus não costumavam chamar de vida a existência consciente em tal lugar. Para eles, vida de verdade era apenas a que o homem tinha enquanto estava na superfície do solo, e não aquilo que experimentaria quando virasse um “fantasma” no mundo subterrâneo.

Pois bem, ainda que as almas dos mortos sejam descritas como “sombras”, ou imagens aproximadas das pessoas falecidas, isso não significa que elas não possuem corpos. Elas têm sim, porém são corpos feitos de uma substância desconhecida, indetectável, o que os faz tênues e invisíveis, diferentes dos corpos físicos, que são sólidos e visíveis. Isto se infere dos relatos bíblicos que descrevem as sensações e percepções das almas, que permitem a elas se reconhecerem ou serem reconhecidas. É o caso de quando o rei de Babilônia faleceu e foi recepcionado no Seol pelos que já estavam lá: 

“Debaixo da terra se agita a morada dos mortos, para receber-te à tua chegada; despertam em tua honra as sombras dos grandes, e todos os senhores da terra, e levantam-se de seus tronos todos os reis das nações. Todos tomam a palavra para dizer-te: Finalmente, eis-te fraco como nós, eis-te semelhante a nós. Tua majestade desceu à morada dos mortos... Tu dizias: Escalarei os céus e erigirei meu trono acima das estrelas. Assentar-me-ei no monte da assembléia, no extremo norte. Subirei sobre as nuvens mais altas e me tornarei igual ao Altíssimo. E, entretanto, eis que foste precipitado à morada dos mortos, ao mais profundo abismo”. – Isaías 14:9-15, AM.

Sendo assim, em termos visuais, a alma tem a mesma aparência que a pessoa tinha antes de morrer. O mesmo pode se concluir na leitura de outros textos, tais como o aparecimento do falecido profeta Samuel para Saul (1 Samuel 28:14), do rico e do mendigo Lázaro da ilustração de Jesus (Lucas 16:22, 23) e da conversa que Jesus teve com os falecidos Moisés e Elias, durante a transfiguração (Mateus 17:3, 4). Todos esses relatos demonstram que a concepção bíblica é de que a alma possui um corpo invisível de aparência humana, mesmo não sendo um corpo material. E muito provavelmente essa imaterialidade é apenas em relação ao mundo físico, e no mundo delas as almas podem tocar e serem tocadas. Ou seja, entre elas é uma realidade material. Daí entende-se o motivo dos monarcas que receberam o rei de Babilônia no Hades terem se levantado de seus tronos e tocado harpas, descrições próprias daquilo que é tangível e que existe em concreto.

Portanto, nota-se que o cenário apresentado na Bíblia sobre este ponto é, de certa forma, uma mistura das ideias homéricas e aristotélicas. A alma se refere tanto ao homem que vive sobre a superfície do solo, quanto à fotocópia dele que vai para o mundo subterrâneo. Naturalmente os escritores bíblicos não se basearam nessas concepções gregas para compor as narrativas supracitadas. A semelhança existe apenas por comparação, e não por influência direta. 

Veja a seguir exemplos na literatura grega que também utilizam as duas acepções, a materialista e a espiritual:

“Tais foram os males pelos quais passei, conduzidos pelos deuses, que penso: a alma de meu pai, se ela voltasse a viver, não iria me contradizer”. – Édipo em Colono, v. 995, de Sófocles.

“As almas que morreram em combate são mais puras do que as que morrem de doenças”. – Fragmento, linha 136, de Heráclito.

“Alcançaram o prado coberto de asfódelos, onde se achavam reunidas as almas, imagens dos mortos. A alma de Aquiles Peleio em primeiro lugar encontraram, mais a de Pátroclo, e assim a do grande e impecável Antíloco, bem como a sombra de Ajaz, o maior, em beleza e estatura... Enquanto estavam reunidas à volta da sombra de Aquiles, aproximou-se-lhes a alma do filho de Atreu, Agamémnone, cheia de dor, pelas almas cercadas de quantos haviam no alto palácio do Egisto morrido e cumprido o destino”. – Odisseia, de Homero, capítulo XXIV (encontro do falecido Aquiles e seus companheiros no Hades), tradução de Carlos Alberto Nunes.

A situação dos que estão no Hades não é agradável, e pouco lembra aquilo antes usufruído qual ser humano. Por isso os antigos não consideravam a existência consciente das almas no Além como sendo uma verdadeira vida. A situação é tão deprimente que no capítulo 11 da Odisseia, quando Aquiles ouve de seus amigos que continuaria sendo o líder deles, ele responde dizendo que essa honra de nada importava, pois até um escravo ou lavrador na superfície do solo era mais feliz que a pessoa mais importante do mundo subterrâneo. Sobre essa reflexão de Aquiles, disse o seguinte comentário:

“Para demonstrar este estatuto infra-ontológico de uma psukhé (“sombra”) no Hades — isto é: a impossibilidade de compará-lo a qualquer forma de vida sobre a terra — Aquiles oporá dois estatutos sociais extremos: o mais baixo entre os vivos e o mais alto entre os mortos, exprimindo desde já sua preferência pela vida, mesmo a de um lavrador assalariado a serviço de um homem sem muitos recursos”. – Ulisses e Aquiles repensando a morte (Odisseia XI, 478-491), de Teodoro Rennó Assunção, Kriterion: Revista de Filosofia, vol. 44 nº 107, junho de 2003.

Para concluir, é importante destacar mais algumas coisas.  A primeira é que nos escritos de Platão o termo “incorpóreo” (asómaton) aparece poucas vezes, porém ele é bastante utilizado pelos filósofos neoplatônicos posteriores, a exemplo de Plotino. E aqui é proveitoso distinguir as duas acepções gregas a respeito do que significava para eles algo não corpóreo: 

1) Para os cidadãos comuns, incorpóreo ou incorporal era tudo aquilo que não pode ser tocado fisicamente, a exemplo do ar que se respira. Entretanto, o ar existe concretamente. Por isso pode ser aspirado pelos pulmões e sustentar a vida do corpo. Eles imaginavam que a alma no Hades tinha uma natureza assim, ou seja, invisível, porém feita de alguma coisa.

2) Já para os filósofos gregos incorpóreo significava a imaterialidade absoluta, o que significa a completa intangibilidade. Ou seja, a consciência humana poderia existir sem ocupar o espaço delimitado de qualquer corpo, seja físico, etéreo ou espiritual. É como se fosse a própria existência dentro de um nada. É assim que os neoplatonistas concebiam a alma no mundo das ideias, um cenário bastante diferente daquele apresentado na Bíblia e na época de Homero.

Na teologia de Orígenes, por sua vez, apenas Deus possui características completamente incorpóreas e todos os demais seres precisam de corpos, sejam quais forem suas naturezas. Logo, quando Orígenes se refere à alma depois da morte como sendo “incorpórea”, ele está dizendo apenas que ela não tem um corpo físico, porém está delimitada em uma forma real e definida, que pode ser chamada didaticamente de “corpo invisível” ou “corpo imaterial”.

7) A alma teve um princípio e houve um tempo em que não existia

Todas as coisas que existem foram feitas por Deus, e não há nada que não tenha sido feito, exceto a natureza do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. E que Deus, que é bom por natureza, desejando que houvesse aqueles sobre quem Ele pudesse conferir benefícios e que poderiam se alegrar por receber os Seus benefícios, criou criaturas dignas disto, ou seja, os que eram capazes de recebê-Lo de uma maneira digna, sobre os quais Ele afirma que também são gerados por Ele quais filhos seus.

Orígenes, Dos Princípios, Livro IV, seção 35.

Conforme já foi comentado, na época de Jesus muitos em Israel acreditavam na preexistência da alma. No entanto, cabe ressaltar que mesmo os judeus ou cristãos que eventualmente acreditassem nisso muito provavelmente nunca chegaram a endossar o conceito platonista segundo o qual a alma, por ser parte de Deus, sempre existiu no mundo das ideias. Pelo menos no caso de Orígenes ele não fez isso, como se nota na transcrição acima. Ele acreditava sim na preexistência da alma, porém achava que ela foi criada em algum momento do tempo, e que só Deus é eterno, sem princípio nem fim.

8) O homem precisa ser remido por Jesus Cristo para alcançar a vida eterna plena

Após esses pontos, também, o ensino apostólico é de que a alma, tendo uma substância e vida própria, deve, após sua partida do mundo, ser recompensada de acordo com seus méritos, destinada a obter uma herança da vida eterna e bem-aventurança, se as suas ações procuraram isso, ou ser entregue ao fogo eterno e aos castigos, se a culpa por seus crimes a levar para isso. E também, que haja um tempo de ressurreição dos mortos, quando este corpo, que agora ‘é semeado em corrupção, se levantará em incorrupção’, e o que ‘semeia em desonra se levantará em glória’. Isto também está claramente definido no ensino da Igreja: que toda alma racional é possuída de livre-arbítrio e volição. 

Orígenes, dos Princípios, prefácio, seção 5.

A vida eterna de contentamento está inteiramente condicionada à concessão de Deus, sendo uma retribuição pela fé da pessoa em Cristo e das obras resultantes dessa fé, e tal vida consistirá na ressurreição do corpo, ao qual será restaurada a sua alma. Desse momento em diante, o ressuscitado terá uma natureza dupla, pois estará apto a viver tanto no céu quanto na Terra. Ninguém alcançará essa vida gloriosa automaticamente depois da morte. Ela está inteiramente vinculada à vontade de Deus. – João 3:16.

Logo, o ponto de vista de Plotino e dos neoplatonistas está em completo desacordo com a Bíblia, pois para eles o sacrifício de Cristo e a misericórdia de Deus são desnecessários, uma vez que o homem teria a capacidade de salvar a si próprio, aperfeiçoando-se constantemente através do processo de morte e reencarnações, até alcançar a perfeição. Orígenes também questionou essa sistemática, ao dizer, por exemplo, o seguinte:

“E se se admitir, nesta hipótese, que aquele que é absolutamente sem pecado não entrará no corpo pelo nascimento, depois de que tempo você supõe que uma alma será encontrada absolutamente pura e não necessitando de transmigração? Mas, no entanto, também, se uma alma fica sempre assim sendo removida do número definido de almas e não retorna mais ao corpo, em algum tempo após infinitas eras, por assim dizer, o nascimento cessará. O mundo, sendo então reduzido a alguns indivíduos, após o aperfeiçoamento de tais deverá perecer, e o fornecimento de almas que vêm no corpo deixará de existir. Mas isto não é agradável à Escritura, pois ela conhece uma multidão de pecadores no tempo da destruição do mundo”. – Comentário ao livro de Mateus, de Orígenes, Livro XIII.

“Celso, portanto, é completamente ignorante do propósito de nossos escritos, e é, então, em sua própria concepção que ele lança descrédito, e não de acordo com o significado real. Considerando que, se ele tivesse refletido sobre o que é apropriado para uma alma que desfruta de uma vida eterna, e sobre a opinião que devemos formar de sua essência e princípios, ele não teria ridicularizado a entrada do imortal em um corpo mortal, que ocorreu não de acordo com a metempsicose de Platão, mas agradavelmente por outra visão maior das coisas”. – Contra Celso, Livro IV, cap. 17.

9) A alma não é inerentemente imortal e depende de Deus para ter uma vida no céu

Eles também são conquistados por vãs esperanças, os que aceitaram a doutrina de Pitágoras e Platão em relação à alma, ao afirmar que sua natureza é ascender à abóbada do céu e ao espaço supercelestial para contemplar as vistas que são observadas pelos abençoados espectadores de cima.

Orígenes, Contra Celso, Livro III, cap. 80.

Outro fator que muda completamente o destino da alma é o julgamento desfavorável de Deus. Ela continuar viva no Hades não é garantia de vida eterna, conforme Jesus aludiu em sua advertência aos que poderiam ser martirizados:

“Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Antes, tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno [ou Geena]”. – Mateus 10:28, NVI, colchetes acrescentados.

O entendimento predominante é que essa destruição tem o sentido de inutilização e não de erradicação da existência, pois a palavra grega traduzida por “destruir” é a mesma utilizada para se referir a um vaso que foi destroçado. Quando alguém quebra um vaso ele não desaparece por completo, pois seus cacos continuam existindo. De modo que a alma do ímpio continuaria em existência, porém em um estado inutilizado e de sofrimento. O que estaria de acordo com as seguintes passagens bíblicas:

“Muitos dos que dormem no pó da terra acordarão, uns para a vida eterna, e outros para a vergonha e confusão sempiterna”. – Daniel 12:2, SBB.

“Se a sua mão o fizer tropeçar, corte-a. É melhor entrar na vida mutilado do que, tendo as duas mãos, ir para o inferno, onde o fogo nunca se apaga, onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga”. – Marcos 9:43, 44, NVI.

“[Pessoas ímpias] subiram à superfície da terra e cercaram o acampamento dos santos e a cidade querida. Mas desceu um fogo dos céus e as devorou. O Demônio, sedutor delas, foi lançado num lago de fogo e de enxofre, onde já estavam a Fera e o falso profeta, e onde serão atormentados, dia e noite, pelos séculos dos séculos” – Apocalipse 20:9, 10, AM, colchetes acrescentados.

No entanto, na história primitiva do Cristianismo apareceram pessoas, inclusive da própria igreja, que questionaram esse entendimento, pois chegaram à conclusão que as almas dos maus seriam destruídas literalmente depois do julgamento de Deus. Neste caso, os textos bíblicos acima deveriam ser encarados de maneira simbólica ou explicados de alguma outra maneira. Mas esse entendimento não prevaleceu na Igreja e os que o defendem desde então são chamados de aniquilacionistas, mesmo que acreditem que a alma continua viva depois da morte do corpo, porém antes do julgamento final de Deus. Sendo assim, os que acreditam na extinção total depois da morte não são o que a ortodoxia cristã chama de aniquilacionistas. A palavra que melhor os descreve é “materialistas”, ainda que tenham importado para dentro desse conceito a crença em Deus (originalmente o materialismo era crido somente por ateus).

Portanto, quando cristãos antigos chamavam a alma de imortal é apenas no sentido de que ela permanece viva depois da morte do corpo, porém essa vida não se confunde com a imortalidade a ser recebida depois da ressurreição em um corpo glorioso, devido à fé em Jesus Cristo. De fato, houve cristãos a exemplo de Justino e Taciano que evitavam chamar a alma de imortal, para não confundir a crença cristã com o conceito grego de imortalidade inerente e definitiva. Sobre essa importante diferença, Orígenes comentou:

“Vendo, no entanto, que Celso alega que ‘os cristãos são conquistados por nós através de vãs esperanças’, respondemos assim quando ele acha falha em nossa doutrina de vida abençoada e de comunhão com Deus: quanto a você, bom senhor, Eles também são conquistados por vãs esperanças, os que aceitaram a doutrina de Pitágoras e Platão em relação à alma, ao afirmar que sua natureza é ascender à abóbada do céu e ao espaço super-celestial para contemplar as vistas que são observadas pelos abençoados espectadores de cima... E não suponha que não está de acordo com a religião cristã eu ter aceitado contra Celso as opiniões desses filósofos que trataram da imortalidade ou da continuidade da alma, pois, mantendo certos pontos de vista em comum com eles, devemos estabelecer nossa posição com mais facilidade, para que a vida futura da bem-aventurança seja apenas para aqueles que aceitaram a religião que está de acordo com Jesus e essa devoção ao Criador de todas as coisas que é puro e sincero, e sem mistura com qualquer coisa criada”. – Contra Celso, Livro III, caps. 80 e 81.

Certamente um dos pontos de vista em comum entre os cristãos e os platonistas em relação à alma é que ela permanece viva no Hades ou em outro lugar. No entanto, quase todo o resto ensinado pelos gregos difere completamente do que foi difundido no Cristianismo primitivo. O contexto das palavras acima de Orígenes é o que ele disse um pouco antes, de que as almas dos ímpios sofrem castigos no Hades e não estão de modo algum asseguradas em uma vida de bem-aventuranças nas esferas superiores, conforme achavam os filósofos da escola de Platão. A vida gloriosa só é alcançada pela graça divina. É uma concessão do Criador dada aos que têm fé. Sendo assim, a existência continuada da alma no mundo dos mortos não significa imortalidade, e se a alma for chamada de “imortal” por conta dessa existência contínua é apenas em um sentido particular. É justamente por isso que Orígenes disse o seguinte:

“Além disso, além do que já dissemos, afirmando que se Deus desejasse qualquer coisa que não fosse desejável seria destrutivo à Sua existência como Deidade, acrescentaremos outra: se o homem, de acordo com a perversidade de sua natureza, desejasse qualquer coisa que fosse abominável, Deus não poderia concedê-la... Ele é a fonte de tudo o que é bom. E reconhecemos que Ele é capaz de proporcionar uma vida imortal para a alma. E que Ele possui não apenas o ‘poder’, mas o ‘desejo’. Em vista, portanto, dessas considerações, não nos sentimos angustiados pela afirmação de Heráclito, adotada por Celso, de que ‘os cadáveres devem ser rejeitados como sendo mais inúteis do que o esterco’. E, no entanto, com referência a isso, pode-se dizer que o esterco, de fato, deve ser rejeitado, enquanto os cadáveres dos homens, por causa da alma que neles habitou, especialmente se tiver sido virtuosa, não deveriam ser rejeitados. Pois, em harmonia com as leis que se baseiam nos princípios da equidade, os corpos são considerados dignos da sepultura, com as honras concedidas em tais ocasiões, sem nenhum insulto, tanto quanto possam ser ajudados, em consideração à alma que habitava dentro do corpo, e não descartá-los (depois que a alma partiu) como se fossem corpos de animais. Não seja então contrário à razão dizer que é a vontade de Deus declarar que, embora o grão de trigo não seja imortal, a espiga que brota dele será, da mesma maneira que o corpo semeado na corrupção não é imortal, mas o que é levantado dele na incorrupção será”. – Contra Celso, Livro V, cap. 24.

10) Os primeiros escritores cristãos menosprezavam o platonismo e suas explicações

Quando diferentes sistemas de crenças são comparados é muito difícil não haver similaridades pontuais entre eles. No caso do Cristianismo em comparação com o platonismo e sua versão plotiniana, naturalmente alguma semelhança pode ser encontrada. Porém isto não significa que tais pontos em comum estão na teologia ou na explicação das coisas sobrenaturais. Em geral, o que mais se assemelha ao ensino cristão são aspectos de comportamento, relacionados às virtudes que o ser humano pode desenvolver a fim de tornar-se melhor. Isto foi bastante enfatizado pelos filósofos gregos. Afinal, conforme já visto, quando pessoas das nações cumprem sem saber preceitos da lei de Deus, é sinal de que Ele pôs tais leis nos corações delas, sem a necessidade de um código escrito divinamente chancelado. – Romanos 2:14, 15.

Ainda que alguns cristãos a partir do século III tenham se esforçado para encontrar equivalências entre o Cristianismo e o platonismo, como foi o caso do próprio Orígenes, a verdade é que isso não abona nem cristianiza o platonismo qual sistema seguro de esclarecimento. E aquilo que os escritores cristãos do segundo século escreveram sobre isso demonstra o quanto eles menosprezavam o platonismo e toda filosofia grega, mesmo que eles tivessem sido anteriormente filósofos pagãos. Eram frequentes as críticas que eles faziam à filosofia e seus proponentes, em favor da superioridade do ensinamento dos apóstolos, mesmo que em determinados momentos destacassem alguma coisa útil da filosofia ou as virtudes de algum filósofo. A amostra a seguir demonstra isso indelevelmente:

“Você aceita as vãs e estúpidas doutrinas daqueles que são considerados filósofos confiáveis? Dos quais alguns disseram que o fogo era Deus, chamando esse Deus ao qual eles mesmos foram e vieram. E alguns [dizem que Ele é] água. E outros, algum dos demais elementos formados por Deus. Mas se alguma dessas teorias for digna de aprovação, cada uma das outras coisas criadas também pode ser declarada Deus. Mas tais declarações são simplesmente afirmações surpreendentes e errôneas dos enganadores”. – Carta de Matetes a Diogneto (c. 125 d.C.), cap. 20, colchetes acrescentados.

“Mas a prova da possibilidade da ressurreição da carne tenho demonstrado suficientemente, em resposta aos homens do mundo... seguindo nossa ordem, devemos agora falar com respeito aos que pensam mal da carne, e dizer que não é digno da ressurreição nem da economia celestial, porque, primeiro, sua substância é terra, e também porque está cheia de toda a maldade, de modo que ela força a alma a pecar junto com ela. Mas essas pessoas parecem ser ignorantes de toda a obra de Deus, tanto da gênesis e formação do homem em primeiro lugar, e por que as coisas no mundo foram feitas. . . . A ressurreição é a ressurreição da carne que morreu. Pois o espírito não morre. A alma está no corpo, e sem alma não pode viver. O corpo, quando a alma o abandona, [já] não é [um ser vivo]. Porque o corpo é a casa da alma, e a alma, a casa do espírito. Estes três, em todos aqueles que apreciam uma esperança sincera e uma fé inquestionável em Deus, serão salvos... o Salvador em todo o Evangelho mostra que há salvação para a carne, por que [então] ainda toleramos esses argumentos incrédulos e perigosos, e não vemos que estamos retroagindo quando ouvimos um argumento tal como este: que a alma é imortal, mas o corpo mortal, e incapaz de ser revivido? Para isso, costumávamos ouvir Pitágoras e Platão, mesmo antes de termos aprendido a verdade. Se, então, o Salvador disse isso e proclamou a salvação somente à alma, que coisa nova, além do que ouvimos de Pitágoras, Platão e toda o seu pessoal, Ele nos trouxe?”. – Sobre a Ressurreição, Justino de Roma (100-165 d.C.), caps. 6 e 10, colchetes acrescentados.

Que coisa nobre você produziu por sua busca da filosofia?... Diógenes... perdeu a vida pela gula. Aristipo... manteve uma vida libertina... Platão, um filósofo, foi vendido por Dionísio por suas propensões de glutão. E Aristóteles... lisonjeava Alexandre, esquecendo-se de que ele não era mais que um jovem... Eu poderia rir daqueles que ainda hoje aderem aos seus princípios... Que tais homens filosofem para mim!” – Discurso aos gregos, Taciano (110-172 d.C.), cap. 2.

Os poetas e filósofos... aplicaram-se na maneira de conjectura... para tentar se poderiam descobrir e apreender a verdade. Mas não foram achados competentes para apreendê-la completamente, porque julgaram oportuno aprender, não de Deus concernente a Deus, mas cada um de si mesmo. Daí vieram cada um à sua própria conclusão a respeito de Deus, e da matéria, e das formas, e do mundo. Mas temos testemunhas das coisas que apreendemos e cremos, profetas, homens que se pronunciaram a respeito de Deus e das coisas de Deus, guiados pelo Espírito de Deus. E você também admitirá, superando todos os outros como você faz em inteligência e em piedade em relação ao Deus verdadeiro, que seria irracional para nós deixarmos de acreditar no Espírito de Deus, que moveu as bocas dos Profetas como instrumentos musicais, e dar atenção às meras opiniões humanas”. – Um apelo em favor dos cristãos, Atenágoras de Atenas (?-180 d.C.), cap. 7.

Todos os autores e poetas, e aqueles chamados filósofos, estão totalmente enganados. E assim, também, são os que dão ouvidos a eles. Pois eles compuseram fábulas e estórias sobre seus deuses... quanto à origem do mundo, eles emitiram opiniões contraditórias e absurdas. Primeiro, alguns deles [os platonistas], como explicamos anteriormente, sustentavam que o mundo é incriado. E aqueles que disseram que era incriado e autoproduzido contradisseram aqueles que propunham que ele foi criado. Pois, por conjectura e concepção humana, falavam e não conheciam a verdade. . . Por isso Eurípides diz: ‘Trabalhamos muito e gastamos nossas forças em vão, porque a esperança está vazia, a não previsão é o nosso guia.’ E sem querer fazê-lo, eles reconhecem que não conhecem a verdade. Mas sendo inspirados por demônios e inchados por eles, eles falaram em suas instâncias o que quer que dissessem. Pois, de fato, os poetas Homero, Sagitário e Hesíodo, como se diz, inspirados pelas Musas, falavam de uma fantasia enganosa, e não de um espírito puro, mas errático. E isto, de fato, claramente surge do fato de que, até hoje, quando os possuídos são às vezes exorcizados em nome do Deus vivo e verdadeiro, esses espíritos de erro confessam que são demônios que também inspiraram esses escritores”. – Para Autólico, Teófilo de Antioquia (115-181 d.C.), Livro II, cap. 8, colchetes acrescentados.

Os ensinos de Orígenes e a controvérsia dos anátemas

Orígenes é provavelmente o autor cristão mais injustiçado de todos os tempos, detratado tanto por pessoas da antiga igreja quanto por indivíduos atuais que não conhecem o que realmente ele escreveu, nem tampouco sua conduta cristã, que era irrepreensível. Diferente de alguns escritores do século II, a exemplo de Atenágoras, Orígenes nasceu em um lar cristão e não foi educado desde cedo na filosofia grega, mas voluntariamente procurou estudá-la depois de adulto, com o intuito de usá-la para converter pagãos ao Cristianismo. Por isso se tornou aluno do filósofo Amônio de Sacas, o mesmo que ensinou Plotino. Ou seja, Orígenes e Plotino foram “colegas de curso”. Como já foi mencionado, Amônio também era de uma família cristã, porém não permaneceu no Cristianismo. O que explicaria Plotino ter familiaridade com ensinos cristãos, pois provavelmente seu mestre colocava em pauta determinados conceitos da Igreja durante as aulas que ministrava.

No entanto, o caminho tomado por Orígenes foi bastante diferente do de Plotino. Orígenes não via na filosofia a forma mais seleta e elevada de esclarecimento. Considerava apenas um sistema útil, com pontos negativos e positivos. Por isso tentou criar o que poderia ser chamado de “filosofia cristã”, expurgando tudo o que não servia da mentalidade grega. Ou seja, era uma abordagem mais limitada e com ressalvas, pois Orígenes dava primazia ao ensino dos apóstolos. Comentando algumas diferenças entre a filosofia de Orígenes e a de Plotino, determinado autor disse:

“Em distinção a Plotino, ainda não está claro em Orígenes se a alma do mundo tem a natureza de uma hipóstase. Mas essa imprecisão faz parte da teologia de Orígenes: a vaga identificação do poder de Deus com a alma do mundo significa dissolver as distinções entre as esferas cósmicas. Portanto, Orígenes não descreve a emanação de uma esfera cósmica para a próxima, mas homogeneíza o cosmos como o espaço contínuo do poder divino. O poder divino onipresente e constantemente trabalhando não fornece qualquer explicação adicional das esferas cósmicas através das quais ele deva ser mediado. Tem o mesmo poder onipresente no céu e na terra. Por meio desta nova interpretação da alma-mundo como o poder divino imediato, torna-se possível salvar a liberdade humana das determinações astrológicas das razões seminais. Mesmo que a concepção de Orígenes de diversificação de um [todo] corresponda ao conceito de harmonia de Plotino, mesmo que ambos descrevam a conexão cósmica interna usando os mesmos termos, Orígenes evita definir a mediação do poder de Deus com tipos astrológicos. Para ele, a mediação do poder divino não funciona em passos e em níveis diferentes, mas é imediatamente ligado às almas individuais. Desta forma, a liberdade individual não é impedida pela predeterminação astrológica ou intervenção cósmica. Orígenes vê o homem como suspenso entre a reivindicação da liberdade individual e aquela harmonia cósmica. O autor do sermão ‘De opificio hominis’ compartilha as ideias de Orígenes, mesmo que ele enfatize a liberdade humana mais apaixonadamente do que Orígenes”. – Philosophia perennis: Esboços históricos da espiritualidade ocidental no pensamento moderno primitivo, medieval e antigo, 2004, de Wilhelm Schmidt-Biggemann, Freie Universität Berlin, Springer, pp. 233, 234.

A iniciativa de Orígenes certamente inspirou os cristãos posteriores que passaram a explicar os ensinos da Igreja de acordo com os métodos filosóficos. Mas é importante que se diga que Orígenes sempre deixava bem claro que considerava o ensino cristão muito superior à filosofia, e ele dizia que era ao aprendizado da Bíblia que seus discípulos deviam dar especial atenção.

Em dado momento de sua vida Orígenes teve que abandonar sua cidade natal, Alexandria, por conta da inveja do bispo local, que não via com bons olhos o progresso de Orígenes na teologia, que gradualmente o tornou apto a ser convocado para dirimir heresias em outros lugares, sempre que havia necessidade. No livro VI de sua obra “História Eclesiástica”, Eusébio relata alguns desses esforços de Orígenes em combater ideias heréticas nas comunidades cristãs. Após alguns anos em seu novo domicílio, Cesareia, Orígenes acabou sendo preso quando irrompeu uma grande perseguição contra os cristãos. Ele morreu algum tempo depois na prisão devido aos maus tratos que sofreu. Mas deixou um grande número de discípulos, a exemplo de Gregório Taumaturgo, que escreveu um texto onde louva o seu mestre e exalta suas qualidades, chamado de “Panegírico a Orígenes”. A escola fundada por Orígenes não morreu com ele, mas consolidou-se com o passar dos anos, a ponto de uns dois séculos depois se tornar palco de novas acusações injustas contra esse dedicado pai da igreja.

Dentre algumas alegações atribuídas a Orígenes, está a afirmação que na ressurreição os corpos seriam levantados na forma de uma esfera de natureza etérea, ou seja, sem características terrestres. Essa acusação estava em um documento com nove anátemas contra Orígenes, elaborado em 543 pelos monges de Laura de Sabas e apresentado ao imperador Justiniano, que assinou o documento e o fez circular pelo império. A essa altura Orígenes já tinha morrido há mais de 200 anos. Note abaixo três desses anátemas imperiais:

1. Se alguém diz ou sustenta que as almas humanas preexistem, no sentido de serem, anteriormente, mentes e forças santas que se desgastaram da visão divina e se voltaram para o pior e por isto se esfriaram ψύχω (“psýko”) no amor a Deus, tomando daí o nome de almas ψυχὴ (“psyché”), e que por punição foram mandadas para os corpos abaixo, seja anátema.

. . .

5. Se alguém sustenta que na ressurreição os corpos humanos ressuscitam em forma de esfera e não professa que seremos ressuscitados em posição erguida, seja anátema.

. . .

9. Se alguém sustenta que o castigo dos demônios e dos homens ímpios é temporário e terá fim depois de certo tempo, isto é, que haverá uma restauração dos demônios ou dos homens ímpios, seja anátema.

Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral”, de Heinrich Denzinger.

Alguns anos depois, em 553, o quinto Concílio Ecumênico ampliou a quantidade de anátemas para quinze, mantendo-se a essência dos anteriores, e o novo documento também circulou por todo o domínio de Roma. Nessa nova versão, a ressurreição esférica é mencionada no décimo anátema: 

“Se alguém disser que depois da ressurreição o corpo do Senhor era etéreo, tendo a forma de uma esfera, e que assim serão os corpos de todos após a ressurreição, e que, depois de o próprio Senhor ter rejeitado o seu verdadeiro corpo e depois que os outros que se levantarem tiverem rejeitado os deles, que a natureza de seus corpos será aniquilada: seja anátema”. – Anátema X, 5º Concílio Ecumênico.

Houve outras acusações a exemplo de que Orígenes teria lançado dúvidas sobre a doutrina da Trindade, e isto também foi mencionado nos anátemas. Porém não será aqui comentado, pois não faz parte do objetivo do presente estudo.

O que está nos anátemas 1 e 9, proferidos em 553, realmente foi ensinado por Orígenes. Ele tanto ensinou que a alma existe antes do corpo, conforme foi visto na seção anterior, como disse que os sofrimentos no fogo no Hades seriam temporários, visando a purificação dos condenados, ainda que acreditasse que esse fogo é eterno. No entanto, não está muito claro que o mesmo se aplica aos demônios, pois, ao que parece, o que Orígenes escreveu sobre o fim da punição deles foi apresentado mais como uma possibilidade e não como algo certo de acontecer. – Veja “Dos Princípios”, Livro I, cap. 6, seção 3 e Livro II, cap. 3, seção 7 e capítulo 10.

De qualquer maneira, é necessário ressaltar que Orígenes nunca apresentou suas interpretações de maneira dogmática, como se elas estivessem acima de qualquer contestação. Embora ele claramente se esforçasse para extrair da Bíblia verdades que não são facilmente vistas, ele fez questão de enfatizar que muito do que ensinava estava aberto à discussão e que havia graus variados de especulação dentro do método alegórico que utilizava, que era inspirado principalmente nas alegorias vistas nas cartas de Paulo aos Hebreus e aos Gálatas, e não necessariamente na obra de Fílon, como alguns costumam supor. É certo que Orígenes conhecia e valorizava as alegorias do judeu Fílon e de outros, a exemplo de Aristóbulo, pois ele mesmo admitiu isso (Contra Celso, Livro IV, cap. 51). No entanto, nota-se uma especial predileção pelas alegorias explicadas por Paulo, pois as mesmas são citadas frequentemente por Orígenes. O que já não ocorre com as de Fílon. Pelo menos não nos escritos atualmente disponíveis. E lembre-se também que a filosofia grega era o objeto comum de estudo de Orígenes e Fílon, e isto resultou em similaridades que podem transparecer erroneamente que Orígenes valorizava mais a obra de Fílon do que aquilo que já era explicado no Novo Testamento ou pela Igreja da época.

Um exemplo da humildade de Orígenes em relação ao que ensinava foi quando ele explicou que a terra da qual Adão e Eva foram expulsos e para a qual o homem está destinado a voltar fica no céu e não neste mundo, e que a Terra onde o homem vive agora um dia deixará de existir. Orígenes não só disse que o paraíso se refere à outra realidade, mas também que, depois da ressurreição, os corpos físicos seriam transformados em corpos espirituais, a fim de estarem aptos para essa mudança radical de domicílio. Ou seja, se tornariam “incorpóreos” em sentido físico. Depois que explicou essas coisas, ele fez a seguinte ressalva, que infelizmente nem mesmo alguns homens proeminentes da Igreja parecem ter considerado antes de condená-lo e destruir a maior parte de sua vasta obra:

“Tendo esboçado, tanto quanto foi possível entender essas três opiniões sobre o fim de todas as coisas e a suprema benção, que cada um de nossos leitores determine por si mesmo, com cuidado e diligência, se qualquer uma delas pode ser aprovada e adotada”. – Dos Princípios, Livro II, cap. 3, seção 7. 

Além do mais, Orígenes tinha o hábito de enfatizar a maneira que as igrejas espalhadas costumavam entender os assuntos apresentados. É o caso, por exemplo, de quando ele mencionou que é um ensino apostólico claramente definido na Igreja de que a alma sobrevive à morte do corpo. Em contraste, algumas linhas depois ele afirmou que a mesma certeza já não havia com relação à origem da alma, se ela vem de outro lugar ou se é gerada no momento da concepção. Reveja o texto:

“Mas com respeito à [origem da] alma, [não está definido] se ela surge do sêmen por um processo de traducianismo [ou seja, da combinação entre as almas do pai e da mãe], de modo que se considere que a racionalidade, ou sua substância, foi colocada nas partículas seminais do próprio corpo ou se [a alma] tem outro começo. E nesse começo, seja ele pelo nascimento ou não, seja concedido ao corpo por algo externo ou não, não está definido com suficiente clareza no ensinamento da Igreja”. – Dos Princípios, prefácio, seção 5, colchetes acrescentados.

Deste modo, se os apóstolos não definiram claramente essa questão, foi somente natural que Orígenes se sentisse livre para buscar essa resposta na própria Bíblia e apresentasse o entendimento a que chegou. Quem conhece realmente o que Orígenes escreveu, sabe que geralmente suas conclusões não resultam de devaneios sem fundamento e que, em geral, o que ele argumenta faz bastante sentido. Uma das exceções foi ele dizer que as estrelas eram seres possivelmente dotados de consciência. O fato da Igreja não ter se posicionado contra alguns de seus ensinamentos enquanto ele ainda estava vivo é forte evidência de que realmente havia assuntos ainda em aberto, a exemplo da origem da alma. 

No entanto, não existe nada nas obras que restaram de Orígenes que corrobore a ideia de que a pessoa ressuscitada seria uma esfera mística. Pelo contrário, quando ele menciona a ressurreição está sempre de acordo com a ortodoxia cristã, ou seja, de que o levantamento dos mortos será corporal e com aparência humana. Abaixo alguns exemplos:

“Se eles também admitem que há uma ressurreição dos mortos, que eles nos respondam, o que é o que morreu? Não foi um corpo? É do corpo, então, que haverá uma ressurreição. Deixe-os nos dizer se eles pensam que devemos usar corpos ou não. Penso que quando o apóstolo Paulo diz que ‘é semeado um corpo natural, surgirá um corpo espiritual’, eles não podem negar que é um corpo que surge ou que na ressurreição devemos usar corpos. O que então? Se é certo que devemos fazer uso dos corpos, e se é dito que os corpos que caíram hão de levantar novamente (pois somente o que antes caiu pode ser devidamente dito que vai ressurgir novamente), pode ser uma questão de dúvida como eles se levantarão novamente, a fim de que possamos ser vestidos com eles uma segunda vez na ressurreição. Uma coisa está intimamente ligada à outra. Pois se os corpos se elevam de novo, eles, sem dúvida, levantam-se para nos cobrir. E se for necessário que sejamos revestidos de corpos, como certamente é necessário, não devemos nos revestir de outros mas de nossos próprios corpos. Mas se é verdade que estes se levantam de novo, e que eles surgem quais corpos ‘espirituais’, não há dúvida de que eles são ressuscitados dos mortos, depois de expurgada a corrupção e deixada de lado a mortalidade. Caso contrário, parecerá vão e supérfluo para que alguém possa surgir dos mortos para morrer uma segunda vez. E, finalmente, pode ser mais claramente compreendido, se considerarmos cuidadosamente quais são as qualidades de um corpo animal, que quando ele é semeado na terra recupera as qualidades de um corpo espiritual. Pois é fora do corpo animal que o próprio poder e a graça da ressurreição produzem o corpo espiritual, quando o transmite de uma condição de indignidade para uma de glória”. – Dos Princípios, Livro II (sobre a ressurreição), cap. 10, seção 1.

“Então podemos nos referir apropriadamente à declaração de Cristo de que Ele não pode fazer nada além do que Ele vê o Pai fazendo e conforme disse [em João 5:19], porque seja o que for que o Pai faça o Filho também faz da mesma maneira. E que Ele ressuscitou dos mortos, isto é, o corpo, o Pai concedendo-lhe isso. O que quer dizer que ele foi o agente principal em ressuscitar a Cristo dentre os mortos”. – Comentário ao Evangelho de João, Livro VI, cap. 21.

“E tal declaração é feita sobre Jesus no Evangelho de João, quando Ele disse: ‘Nenhum homem tira a minha vida de mim, mas eu a ofereço por minha iniciativa, e eu tenho o poder para oferecê-la, e eu tenho o poder para tomá-la novamente’. E talvez tenha sido por esta razão que Ele apressou Sua partida do corpo, para que ele pudesse preservá-lo, e que suas pernas não fossem quebradas, assim como as dos ladrões que foram crucificados com Ele”. – Contra Celso, Livro II, cap. 16.

“Mas, visto que ele ridicularizou extensivamente a doutrina da ressurreição da carne, que foi pregada nas Igrejas, e que é mais claramente compreendida pelo crente mais inteligente, e como é desnecessário voltar a citar suas palavras, que já foram aduzidas, permitam-nos, com relação ao problema... afirmar e estabelecer ao máximo da nossa capacidade alguns pontos expressamente destinados aos nossos leitores. Nem nós, nem as Sagradas Escrituras, afirmamos que com os mesmos corpos, sem uma mudança para uma condição mais elevada, ‘os que morreram há muito tempo se levantarão da terra e viverão de novo’. Pois ao falar, Celso faz uma falsa acusação contra nós... Nossa esperança, portanto, não é ‘a esperança de vermes, nem a nossa alma deseja um corpo que tenha visto corrupção’, pois embora ela possa exigir um corpo, para se mover de um lugar para outro, entende-se o assunto conforme meditado com a sabedoria (que é de cima), de acordo com a declaração: ‘A boca dos justos vai falar sabedoria’ [Salmo 37:30]. Deste modo, a diferença entre a ‘casa terrena’, na qual está a tenda física que deve ser dissolvida, e aquela em que os justos gemem esmagados, não querendo ‘despojar-se’ da tenda, mas ser ‘vestida com ela’, ao vestir-se, a mortalidade pode ser absorvida pela vida [2 Coríntios 5:1-4], pois, em virtude de toda a natureza do corpo ser corruptível, a tenda corruptível deve se revestir da incorrupção. E a sua outra parte, sendo mortal e tornando-se passível da morte que segue o pecado, deve se revestir da imortalidade, para que, quando os corruptíveis se revestirem da incorrupção e os mortais da imortalidade, então aconteça o que foi previsto pelos antigos profetas: a aniquilação da ‘vitória’ da morte (porque ela nos conquistava e nos submetia) e de seu ‘aguilhão’, com o qual punha a alma imperfeitamente defendida e infligia as feridas que resultavam do pecado”. – Contra Celso, Livro V, caps. 18 e 19. 

Portanto, torna-se evidente que esse estranho conceito de que os ressuscitados seriam esferas não partiu da pessoa de Orígenes, mas talvez de seus seguidores muitas décadas depois de sua morte. De modo que eles certamente seriam reprovados por Orígenes caso ele estivesse vivo naquela ocasião. Já foi até sugerido que algumas declarações que há na obra “Dos Princípios”, que é a que foi usada como referência para os anátemas, são acréscimos ou interpolações dos origenistas, e não faziam parte do texto original. O próprio tradutor da única edição completa que há dessa obra, Rufino, disse que excluiu de sua tradução latina o que considerou acréscimos dos origenistas. Além disso, os monges ortodoxos que o acusaram postumamente achavam que a filosofia “origeneana” que contribuiu para tudo isso surgiu com Pitágoras, Platão, Plotino, Evágrio (345-397) e Dídimo (313-398). De fato, Plotino era um dos que destacavam as qualidades da forma esférica, conforme visto numa seção anterior. Crisipo de Solis foi outro que também ensinou que depois da morte a alma tem formato esférico:

“Um comentário posterior sobre a Ilíada de Homero diz que Antístenes sustentou que ‘as almas têm a mesma forma que os corpos que as contêm’. Contra isso, de acordo com o mesmo comentarista, o estoico Crisipo de Solis (279-206 a.C.) insistiu que ‘depois da separação do corpo, as almas assumem a forma de uma esfera’.” – O Real Cassiano Revisitado: Vida Monástica, Paideia Grega, e Origenismo no Sexto Século, Brill, 2012, de Panayiotis Tzamalikos.

Ter Orígenes estudado tais filósofos e nada ter dito ainda em vida sobre essa teoria das esferas da ressurreição é uma evidência de que ele jamais acreditou nisso. O conceito de Orígenes com respeito à alma se assemelhava à ideia homérica, ou seja, de que as almas têm as mesmas aparências dos corpos físicos onde habitaram, conforme Orígenes descreveu nas aparições do ressuscitado Jesus. Então não faria mesmo sentido ele contradizer essa concepção por dizer que o corpo que a alma receberia na ressurreição não teria também aparência humana. O padrão que Orígenes apresentou foi, portanto, sempre o mesmo: antes, durante e depois.

A verdadeira influência da filosofia grega no Cristianismo

Desde que o mundo existe e as pessoas começaram a se organizar em comunidades, cidades e nações, há uma troca cultural entre os povos, e eles podem influenciar as crenças e costumes uns dos outros. Este é um processo antropológico natural que certamente Deus sabia que ocorreria, quando ele separou os grupos nacionais conforme está descrito na Bíblia:

“Quando o Altíssimo repartia as nações, quando espalhava os filhos de Adão ele fixou fronteiras para os povos, conforme o número dos filhos de Deus, mas a parte de Iahweh foi o seu povo, o lote da herança foi Jacó”. – Deuteronômio 32: 8, 9, BJ.

Os “filhos de Deus” acima mencionados são as criaturas angelicais a quem Deus delegou os domínios da Terra, uma parte das quais se voltou contra a soberania do Criador. Conforme aludido nesse texto de Deuteronômio, Deus reservou para si um povo em especial, os descendentes de Jacó, que teve o nome mudado para Israel e com este nome sua nação passou a ser conhecida. O governante invisível de Israel é o arcanjo Miguel, que foi responsável pela expulsão dos anjos maus do céu (Daniel 10:12-21; Apocalipse 12:7-12). Jacó era filho de Isaque e neto de Abraão, os quais pertenciam a um povo semítico chamado de hebreus. Antes de seus descendentes receberem de Deus o território de Israel, eles viveram no Egito por cerca de 400 anos e lá foram escravizados. Mas liderados por Moisés, que era um hebreu que tinha sido adotado pela filha do faraó, eles foram libertados desse jugo. Depois de libertos, Moisés estabeleceu uma constituição de leis teocráticas para o seu povo. Sobre o tempo que viveu qual egípcio o Novo Testamento diz:

“Foi recolhido pela filha de Faraó e ela o criou como seu próprio filho. Em conseqüência disso, Moisés foi instruído em toda a sabedoria dos egípcios. De fato, era poderoso nas suas palavras e ações”. – Atos 7:21, 22, TNM.

A informação acima é importante porque Moisés foi o primeiro escritor bíblico, e a maneira que ele redigiu seus livros reflete até certo ponto o estilo de escrita egípcio, que foi combinado com o pensamento hebraico. Além disso, os seus livros serviram de modelo para os outros escritores que surgiram depois. Com isso em mente, um detalhe interessante é que os egípcios, embora acreditassem na vida depois da morte, não tinham o costume de chamar de “alma” a parte invisível que sobrevivia. Veja abaixo dois exemplos:

“Se esse discurso é aprendido sobre a terra, ou está escrito em cima do caixão, ele (o falecido) pode vir adiante em cima todos os dias que lhe apraz e novamente entrar em sua casa sem impedimento. E não deve ser dado a ele pão e cerveja e carne de carne na tábua de Ra: ele deve receber loteamento nos Campos de Aaru* e não deve ser dado a ele trigo e cevada, porque ele estará florescendo como quando estava na terra”. – O Livro Egípcio dos Mortos (1904), de Renouf e Naville, “Invocação a Osiris”, p. 10.

* Ou “Campo de Juncos” (Sekhet-Aaru), nome que os egípcios davam ao paraíso que esperavam alcançar depois da morte.

“Eis que eu estou na tua presença, ó Deus de Amentet (o Ocidente). Não há pecado em meu corpo. Eu não falei o que não é verdadeiro conhecimento de causa, nem fiz qualquer coisa com um coração falso. Que tu me concedas ser semelhante a esses favorecidos que estão contigo, e que eu possa ser um Osíris grandemente favorecido do bonito deus, e amado do Senhor das Duas Terras, eu que sou um verdadeiro escriba real que te ama, [eu,] Ani, cuja palavra é verdade diante do deus Osíris”. – Livro dos Mortos, papiro com o discurso de Ani.

O Livro dos Mortos era uma coletânea de textos mais ou menos padronizada, escrita em papiro, que era colocada junto ao defunto para guiá-lo na fase de provações no mundo dos mortos. Não era qualquer egípcio que podia pagar por esse “benefício”, pois o preço que cobravam por um exemplar era elevado, equivalente ao salário de seis meses de um escriba. Dentre as muitas versões desse texto que já foram descobertas a mais conhecida e bem preservada é a do papiro do escriba Ani.

Perceba que não se diz que “a alma do falecido pode vir para o caixão” ou que “minha alma (depois da morte) está na tua presença (do deus)”. Mas sim que a própria pessoa se encontra nessas situações. Esse modo de se expressar tem a ver com a expectativa que os egípcios tinham sobre a vida eterna. Para eles, o Além seria um revival das realidades terrestres e o paraíso nada mais era do que uma cópia melhorada da terra que amavam e conheciam. A mumificação dos corpos refletia esse sentimento de apego ao que é material. Por isso era inconcebível para eles que os mortos se tornariam seres imateriais esvoaçando em algum lugar estranho do universo. Esse sentimento egípcio certamente contribuiu em algum nível para os hebreus também conceberem a Terra como o único local possível de felicidade e o Seol um lugar triste e indesejado, onde só habitavam fantasmas (esta parte da crença é semelhante à de outros povos semitas, a exemplo dos babilônios).

Note agora a maneira que Moisés relatou o desejo de morrer de Jacó, que pensava que seu filho José tinha morrido:

“Quero descer de luto ao Xeol, para junto do meu filho”. – Gênesis 37:35, MD.

O paradeiro do corpo de José era desconhecido e Jacó achava que se morresse encontraria o seu filho no Seol, ou melhor, a “sombra” dele. Os povos semitas, incluindo os hebreus, achavam que o mundo dos mortos ficava nas profundezas da Terra, ou no “coração” dela (Salmo 71:20; Mateus 12:40). Esta é mais uma das muitas evidências que os hebreus jamais foram materialistas ou aniquilacionistas. Mas, enfim, o ponto a destacar nesse texto é que Jacó disse “eu quero descer para o Seol”, e não “eu quero que minha alma desça para o Seol”. Essas palavras que Moisés colocou na boca de Jacó refletem a linguagem egípcia sobre os mortos. Abaixo outro exemplo, em um texto também atribuído a Moisés:

“A nuvem certamente acaba e vai embora; assim não subirá aquele que desce ao Seol”. – Jó 7:9, TNM.

Novamente, ele não disse “assim não subirá a alma que desce ao Seol”, mas a própria pessoa. Ou seja, qualquer um que morre não volta para este mundo. (Durante muito tempo os hebreus não nutriram a esperança da ressurreição, embora ela estivesse presente de maneira esporádica entre os que tinham mais fé). De modo que não era comum se referir a quem ia para o Seol com a palavra “alma”, pois esta era mais comumente usada para se referir aos seres vivos na Terra, humanos e animais. O texto a seguir é uma franca exceção:

“Porque vós não abandonareis minha alma na habitação dos mortos [Seol], nem permitireis que vosso Santo conheça a corrupção”. – Salmo 16[15]:10, AM, colchetes acrescentados.

No entanto, a linguagem mudou com o tempo, devido à influência grega resultante das conquistas de Alexandre, o Grande. A interação com o mundo grego nessa fase helenística foi tão grande que judeus de Alexandria traduziram o Antigo Testamento inteiro para a língua grega, inclusive os livros deuterocanônicos (que os protestantes chamam de “apócrifos”). Assim, quando chegou a época de Jesus (no século I), os judeus já estavam bastante helenizados. O que significa principalmente que a linguagem deles já não era a mesma da dos velhos tempos, e não que as crenças judaicas foram substituídas por crenças gregas.

Um exemplo que revela essa mudança é o episódio relatado na Bíblia sobre o retorno do falecido profeta Samuel, que apareceu para o rei Saul depois que foi chamado por uma necromante. Note a seguir como essa história foi contada por narradores diferentes ao longo do tempo:

a) Século 10 a.C.

“[Saul] disse-lhe então: ‘Que aparência tem ele?’ Ela [a necromante] respondeu: ‘É um velho que vem subindo. Está envolto num manto. Saul reconheceu então que era Samuel. Inclinou-se com a face por terra e se prostrou. Samuel disse a Saul: ‘Por que me perturbaste, fazendo-me subir?”. – 1 Samuel 28:14, 15, TEB, colchetes acrescentados.

b) Século 3 a.C.

“Então Saul morreu por causa de suas transgressões, as quais ele transgrediu contra Deus, contra a palavra do Senhor, porque ele não a manteve, porque Saul procurou o conselho de uma feiticeira, e Samuel, o profeta lhe respondeu”. – 1 Crônicas 10:13, Septuaginta Grega.

c) Século 2 a.C.

“Amado por seu Senhor, Samuel, profeta do Senhor, estabeleceu a realeza, e ungiu governantes sobre o seu povo... Mesmo depois de ter adormecido, profetizou ainda e anunciou ao rei o seu fim: do seio da terra elevou a voz, profetizando para apagar a iniquidade do povo”. – Eclesiástico 46: 13, 20, TEB.

d) Século 1 d.C.

“Tão logo ele [Saul] a convenceu através deste juramento que não havia motivo para temor, ele pediu que ela [a necromante] fizesse subir a alma de Samuel. Ela, mesmo sem saber quem Samuel era, o convocou do Hades”. – Antiguidades Judaicas 6:327, de Flávio Josefo, colchetes acrescentados.

e) Século 2 d.C.

“Quando chegarmos ao fim da nossa vida, poderemos pedir o mesmo de Deus, aquele que é apto para impedir que qualquer vergonhoso anjo do mal leve nossas almas. E que nossa alma sobrevive [à morte] eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou”. – Diálogo com Trifão, de Justino de Roma, cap. 105, colchetes acrescentados.

Portanto, nota-se que a crença não mudou, mas apenas a maneira de expressá-la. A linguagem egípcia para se referir aos mortos foi substituída pela grega, embora as duas se misturassem conforme a conveniência de cada escritor. Ou seja, a forma mudou, mas a essência foi mantida. Uma obra de referência diz o seguinte sobre essa mudança geral no linguajar, em referência a um trecho do livro deuterocanônico da Sabedoria:

“Quando o autor da Sabedoria de Salomão afirma que ‘as almas dos justos estão nas mãos de Deus... porque, embora aos olhos dos homens eles tenham sido punidos, têm uma esperança segura de imortalidade... porque Deus os testou e os achou dignos de serem Seus’ (3:1-5), ele pode estar usando linguagem emprestada do mundo helenístico, mas suas ideias são um legado de seus antepassados judeus”. – New Testament Theology, George Bradford Caird e L. D. Hurst, editores, 1994, pp. 243-246.

Essa prática dos escritores bíblicos de apresentar informações canônicas de acordo com a linguagem e a cultura de cada época adquiriu maior significado a partir da escrita do Novo Testamento, onde referências à filosofia greco-romana se fazem mais presentes, tanto em citações diretas quanto nas alusões ao seu conteúdo. Até mesmo determinados modelos da literatura grega são imitados, conforme diz outra obra:

“Pelo fato de estarem vivendo em um mundo helenizado, os escritores do Novo Testamento falavam, liam e escreviam em grego. O tipo de grego que escreviam era a língua comum (o coiné) do mundo greco-romano. A maioria dos escritores do Novo Testamento conhecia outras obras da literatura grega e as citavam. João alude a Filo de Larissa. Paulo cita Epimênides, Arato e Menandro; e seu estilo epistolar foi redigido segundo modelos criados por escritores gregos, como Isócrates e o filósofo Platão. Os escritores evangélicos eram típicos historiógrafos gregos. Suas obras seguem o modelo estabelecido pelo historiador grego Heródoto, que instituiu um alto padrão de observação e descrição”. – A Origem da Bíblia, CPAD, 1998, de Philip W. Comfort, F. F. Bruce e outros, pp. 279, 280.

O caso talvez mais interessante é o uso da palavra grega Logos, que significa “palavra” ou “verbo”. Para Heráclito, Platão e outros filósofos o Logos tinha conotação filosófica definida. Para eles não se referia apenas ao som articulado na fala, mas ao próprio pensamento que torna possível uma palavra ser dita. Ou seja, a razão ou o raciocínio. A mesma ideia eles aplicavam à formação do Universo, por considerar que tudo o que existe resulta da ação do Logos eterno, o princípio racional preexistente, que atua também como mediador entre o mundo sensível (físico) e o inteligível (espiritual).

Certamente por conhecer o sentido cósmico que os gregos davam à palavra Logos, o apóstolo João a usou para se referir ao Filho de Deus, o ser que criou tudo o que existe:

“No princípio era o Verbo [Logos], e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito... E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade”. – João 1:1-3, 14, AM.

Embora não houvesse rigorosa equivalência entre a filosofia grega sobre o Logos e a informação bíblica sobre a grandiosidade do Filho de Deus antes dele se tornar o homem Jesus, a similaridade era óbvia e a comparação inevitável (Provérbios 8:22-36). Ter João se valido desse termo pode ter sido uma contribuição importante para chamar a atenção dos sábios gregos para a revelação divina. Além, é claro, de um motivo a mais para os cristãos escreverem sobre filosofia alguns séculos depois.

A presença desses elementos helenísticos no Novo Testamento indica que a intertextualidade entre o relato bíblico e os escritos gregos já estava em pleno andamento no primeiro século e o que aconteceu depois com ela foi apenas ganhar corpo. Há comentaristas que chegam a dizer até que a mitologia grega poderia ser adaptada pontualmente às necessidades do ensino cristão, a exemplo de algo que o apóstolo Paulo disse em sua carta aos efésios:

“O motivo do renascimento de Dionísio poderia ter sido usado para exortar o homem a se desenvolver intelectualmente e afastar-se da esfera da geração e da decadência e de toda a emocionalidade irracional. A exortação bíblica na carta de Paulo aos Efésios (5:14) ‘Despertai, ó adormecidos, e levantai-vos dos mortos’ poderia muito bem ter sido parte deste contexto de uma revelação sobre a esfera da geração e da decadência como a esfera dos ‘mortos’ e sobre a esfera da alma carregada por sua concha fina corpórea como a esfera do sono”. – A Alma e seu Corpo Instrumental: uma Reinterpretação de Aristóteles, 2003, Brill, de A. P. Bos, p. 344.

Naturalmente não foi necessário chegar a tanto, ainda que Clemente de Roma, um amigo de Paulo, tenha feito isso ao citar o mito da Fênix que revive da morte para ilustrar o ensino da ressurreição (1 Coríntios 26:1-3, de Clemente). Mas quem achar que Paulo tinha em mente essas coisas ao escrever seu conselho para os efésios estará apenas especulando. Mas com relação à filosofia grega não resta dúvida que teólogos cristãos realmente se enveredaram por esse caminho. Os primeiros a dar esses passos de maneira mais consistente foram Clemente de Alexandria e Orígenes. Mas o apogeu só foi alcançado depois, com Gregório de Nazianzo e Agostinho de Hipona, nos séculos IV e V, respectivamente. A seguir dois exemplos do que Orígenes escreveu em termos gregos ou filosóficos:

“Mas entre todos os seres inteligíveis, isto é, incorpóreos, o que é tão superior a todos os outros, tão indescritível e incalculavelmente superior, como Deus, cuja natureza não pode ser entendida ou vista pelo poder de qualquer entendimento humano, mesmo o mais puro e mais brilhante?... Mas a mente, por seus movimentos ou operações, não precisa de espaço físico, nem magnitude sensível, nem forma corporal, nem cor, nem qualquer outro desses adjuntos que sejam propriedades do corpo ou da matéria” – Dos Princípios, Livro I, cap. 1, seções 5 e 6.

“Quando as coisas corriqueiras que se vêem desaparecerem, e toda a corrupção for abalada e removida, e quando todo o espaço ocupado por este mundo, em que se diz que estão as esferas dos planetas, for deixado para trás e rebaixado, será alcançada a abóbada fixa dos piedosos e dos bem-aventurados acima dessa esfera, que é chamada de não-errante (fixa), como em uma boa terra, em uma terra dos vivos, que será herdada pelos mansos e pacíficos, a essa terra pertence esse céu (que, com sua extensão mais magnífica, envolve e contém a própria terra), que é chamado verdadeiramente e principalmente de céu, no qual o céu e a terra, o fim e a perfeição de todas as coisas, podem ser seguramente e confiantemente colocados aqueles que sofreram apreensão e castigo por meio de purgação devido às ofensas praticadas. Depois de terem cumprido e desempenhado todas as obrigações, merecerão uma habitação nessa terra”. – Dos Princípios, Livro II, cap. 3, seção 7.

Mesmo sendo clara a influência do platonismo no discurso de Orígenes, ao mencionar, por exemplo, o inteligível (espiritual) e o sensível (físico), ele não chegou a sistematizar a crença cristã de acordo com o modelo platonista. Foi somente a partir do século IV que os autores cristãos começaram a fazer isso, conforme exemplificado a seguir:

“Os teólogos cristãos revisarão esta parte de Platão com a doutrina da criação a partir do nada (criação ex nihilo), ao mesmo tempo em que insistem na infinidade de Deus (e não da matéria). Os filósofos gregos estavam contentes em pensar que a matéria sempre esteve lá para ser trabalhada, embora os gregos não pudessem chegar a um acordo sobre o que estava fazendo ali antes de ser transformada em coisas individuais (ou simplesmente se tornar assim, como diziam os epicureus). No entanto, os gregos concordaram que algo não pode vir do nada, e como resultado a explicação de como Deus criou o mundo é infinitamente mais simples do que a versão cristã, já que o Deus grego é um artesão e não o onipotente que de alguma forma fala ao mundo para vir à existência. Podemos imaginar um artesão moldando algo enquanto não temos experiência de um orador dizendo algo que acontece imediatamente do jeito que foi dito, mas a posição cristã tem a vantagem de tornar a matéria algo que Deus controla e dela se aproveita. A matéria, para Platão, permanece uma força potencial para o mal, uma vez que tem uma história fora do controle de Deus (o que pode ser por isso que Platão insiste que o Demiurgo usou todos os elementos para ordenar o cosmo, não deixando nada fora de sua atividade [Timeu, 32c])”. – Jesus Cristo, Deus Eterno: Carne Celestial e Metafísica da Matéria, 2012, Oxford University Press, de Stephen H. Webb, p. 31.

Sim, os autores cristãos tratavam dos mais variados assuntos e não apenas os relacionados à imortalidade da alma. Visto que não havia mais perseguições, e a filosofia é um vasto campo para debates, eles podiam se dedicar às abordagens filosóficas, adaptando-as à temática cristã. Finalmente o Logos de Platão podia ser abertamente comparado ao Logos da cláusula de João. E depois do debate ariano chegou-se à conclusão que o Filho era apenas outra designação de Deus, sendo ele tão eterno quanto o Pai. A transcendência das formas preconizada por Platão também foi tida como análoga à realidade espiritual. O próprio ato de pensar passou a ser considerado um reflexo do mundo imaterial.

Mas a combinação da teologia com a filosofia não agradou a todos e até hoje isso tem sido objeto de discussão, especialmente entre os mais fundamentalistas que reivindicam a simplicidade da era apostólica e do século imediatamente depois, quando elementos da filosofia vinham à tona no ensino da Igreja apenas de maneira incidental. Até certo ponto as críticas são válidas, uma vez que existe uma distância significativa entre o discurso filosófico e aquilo que o leitor está acostumado a ler na Bíblia. Uma obra de referência disse algo que toca nessa problemática:

“Tendo escutado as lições de Amônio Saccas, é plausível que Plotino conhecesse o dogma da Trindade. Os primeiros Padres da Igreja (Eusébio de Cesaréia, Teodoreto de Ciro, Clemente de Alexandria), num concordismo complacente, fizeram de Plotino uma leitura cristã, no que erraram. Não nos detemos em outros aspectos, por haver um capítulo à parte, versando sobre Plotino e o Cristianismo. Bastam, aqui, algumas observações relativas à linguagem de Plotino e à dos Santos Padres. É certo que entre a teologia de Plotino e a dos Padres há pontes. Ambos tratam de temas comuns. Isso não deve causar estranheza, porque os escritores cristãos e pagãos cultos serviram-se da linguagem do seu tempo, que é a expressão da cultura, na qual medrava o cristianismo e florescia o neoplatonismo. Demais isso, nas Escolas, imbuíram-se do mesmo modelo da arte de pensar. É inegável e sabido que os cristãos aproveitaram não poucas idéias do paganismo. Por isso, os loci communes [lugares comuns] manifestam a cultura comum do neoplatonismo e do cristianismo. Quem imitou a quem? Quem emprestou idéias a quem?” – Plotino: um estudo das Enéadas, de Reinholdo Aloysio Ullmann, 2ª edição, 2008, Coleção Filosofia 134, ediPUCRS, pp. 113, 114, colchetes acrescentados.

E falando em erro, o autor da publicação acima cometeu um equívoco. Clemente de Alexandria (150-215), o mestre cristão de Orígenes, não pode ter incentivado a leitura de Plotino, pois este é do século seguinte (204-270) e ainda era uma criança quando Clemente faleceu. Mas o incentivo para ler Plotino realmente aconteceu, por parte de alguns líderes eclesiásticos do século IV em diante. E até hoje ainda há quem defenda essa leitura. A amostra plotiniana que foi apresentada aqui e o confronto da mesma com o ensino cristão de sua época talvez seja suficiente para o leitor tirar suas próprias conclusões sobre se a obra de Plotino é importante para o cristão ou não...

De qualquer maneira, essa discussão é absolutamente irrelevante no que tange ao conceito judaico-cristão sobre a alma, pois está bastante óbvio que o entendimento vigente não se deve à filosofia grega ou a qualquer outra filosofia. O povo de Deus sempre acreditou que o homem possui uma parte que sobrevive à morte do corpo. Chamá-la de “alma” ou de “sombra” é apenas um detalhe de ordem linguística, psicológica ou antropológica, pois, com o tempo, a distinção entre corpo e alma ficou cada vez mais clara e inequívoca. Também pouco importa se os antigos hebreus não tinham uma perfeita noção de como se dá essa sobrevivência, pois achavam que ela é sempre negativa, uma vez que o quadro está bem definido no Novo Testamento, conforme afirmam diversas obras eruditas, a exemplo desta:

“Seja qual for o ponto de vista que se tenha a respeito do desenvolvimento da doutrina da imortalidade da alma no A[ntigo] T[estamento] dificilmente haverá dúvida que é completamente assumido no N[ovo] T[estamento] que as almas dos homens, bons e maus, sobrevivem à morte”. – Enciclopédia Bíblica Padrão Internacional, 1915, Vol. 4, verbete “Punição”, p. 2502.

A afirmação acima pode ser facilmente confirmada na Bíblia e nos escritos imediatamente após a era apostólica:

a) O homem possui uma alma espiritual invisível:

“Almejei-te com a minha alma durante a noite; sim, com o meu espírito dentro de mim estou à procura de ti”. – Isaías 26:9, TNM.

“E agora se derramou a minha alma dentro de mim; Apoderam-se de mim dias de tribulação”. – Jó 30:16, ibid.

“E o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo, sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”. – 1 Tessalonicenses 5:23, AM.

b) Quando o corpo morre essa alma se desprende dele:

“Ao sair-lhe a alma (porque morreu), chamou-lhe Benoni; mas seu pai chamou- lhe Benjamim”. – Gênesis 35:18, SBB.

“Então se estendeu sobre o menino três vezes, e clamou ao Senhor, e disse: Ó Senhor meu Deus, rogo-te que a alma deste menino torne a entrar nele”. – 1 Reis 17:21, ACRF.

“Acontece que um moço, chamado Êutico, que estava sentado numa janela, foi tomado de profundo sono, enquanto Paulo ia prolongando seu discurso. Vencido pelo sono, caiu do terceiro andar abaixo, e foi levantado morto. Paulo desceu, debruçou-se sobre ele, tomou-o nos braços e disse: Não vos perturbeis, porque a sua alma está nele.”. – Atos 20:7-12, CBC.

c) Depois da morte a alma vai para o mundo subterrâneo:

“O SENHOR faz morrer e faz viver, faz descer ao Sheol e de lá voltar”. – 1 Samuel 2:6, TEB.

“Pois não deixarás a minha alma no Seol, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção”. – Salmo 16:10, AREB.

 “Os mortos [ou “sombras”] tremem de medo nas águas debaixo da terra”. – Jó 26:5, NTLH, colchetes acrescentados.

“Para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai.”. – Filipenses 2:10, 11, NVI.

d) Em relação ao corpo, a alma é imortal:

“O que eu vos digo na escuridão, dizei na luz; e o que ouvis sussurrado, pregai dos altos das casas. E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Mateus 10:27, 28a, TNM.

“Vi as almas dos executados com o machado, pelo testemunho que deram de Jesus e por terem falado a respeito de Deus”. – Apocalipse 20:4, ibid.

Naturalmente, subentende-se no texto acima “as almas dos [corpos] executados com o machado”, pois as almas não podem ser assassinadas, mas apenas os seus corpos, conforme Jesus disse.

e) Expressando-se à maneira do Antigo Testamento, os apóstolos disseram que depois da morte a alma do cristão vai para o céu viver com Jesus Cristo:

“Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:23, BJ.

“Temos, pois, confiança e preferimos estar ausentes do corpo e habitar com o Senhor. Por isso, temos o propósito de lhe agradar, quer estejamos no corpo, quer o deixemos”. – 2 Coríntios 5:8, 9, NVI.

“É justo despertar-vos com as minhas admoestações, enquanto estou nesta tenda terrena [o corpo], sabendo que em breve hei de despojar-me dela. . . Assim farei tudo para que, depois da minha partida, vos lembreis sempre delas”. – 2 Pedro 1:13-15, BJ, colchetes acrescentados.

Felizes os mortos que morrem em união com o Senhor”. – Apocalipse 14:13, TNM.

f) Os sucessores dos apóstolos reafirmaram tudo o que foi dito acima:

“Pedro, por causa de inveja injusta, não suportou nem um nem dois, mas muitos labores, e quando, por fim, sofreu o martírio, partiu para o lugar de glória que lhe era devido. Por causa da inveja, Paulo também obteve a recompensa da perseverança... foi removido do mundo, e entrou no lugar santo, tendo provado ser um exemplo impressionante de paciência”. – Carta aos Coríntios, Clemente de Roma (30-100 d.C.), cap. 5.

“Pois, embora eu esteja vivo enquanto escrevo para vocês, estou ansioso por morrer. Meu amor foi crucificado, e não há fogo em mim desejando ser alimentado, mas há dentro de mim uma água que vive e fala, dizendo-me interiormente: Vem ao Pai”. – Carta aos Romanos, Inácio de Antioquia (30-107 d.C.), cap. 7.

A alma imortal vive em uma tenda mortal, e os cristãos vivem quais residentes forasteiros em um mundo corruptível, buscando alcançar uma morada incorruptível nos céus... Eles estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Eles passam os dias na terra, mas são cidadãos do céu... Eles são mortos e restaurados à vida”. – Carta de Matetes a Diogneto (c. 125 d.C.), caps. 6 e 20.

“Assim adquirido a coroa da imortalidade, [Policarpo] agora, com os apóstolos e todos os justos [no céu], glorificam alegremente a Deus”. – O Martírio de Policarpo (65-155 d.C.), cap. 19, colchetes acrescentados.

Caso queira ver mais exemplos, os dois textos abaixo são recomendados:

O que a Bíblia realmente ensina sobre a morte

O que ensinaram os escritores cristãos do segundo século?

Tendo em mente a visão panorâmica das citações acima, entende-se porque Orígenes disse que a crença de que a alma sobrevive à morte era um ensino apostólico bem estabelecido na Igreja, e que não havia nenhuma dúvida quanto a isso. O que demonstra que são muito imprudentes aqueles que, mesmo depois de apresentados aos textos supracitados, afirmam que a Bíblia não possui tal ensino. O que explicaria tamanha cegueira?

A fé do cristão de que a morte não resulta em extinção ou aniquilamento sempre foi clara e bem estabelecida, e as negações deprimentes dos primeiros hebreus que borravam essa esperança não devem ser superestimadas, pois elas fazem parte de um processo gradual de esclarecimento do povo de Deus (Provérbios 4:18), conforme descrito pelo seguinte autor:

“Os hebreus aguardavam uma morte pacífica na velhice, quando seus corpos fossem enterrados ao lado dos de seus antepassados enquanto suas ‘sombras’ ficariam com todas às outras ‘sombras’ e juntas por um tempo em extrema fraqueza no mundo subterrâneo do Seol (veja Jó 3:13-19; Isa. 14:9-11)... Até o fim do período do Antigo Testamento, não havia qualquer concepção de uma vida significativa após a morte... Os hebreus não tiveram nossa esperança cristã, mesmo assim eles estavam aptos a enfrentar com coragem a morte e aceitá-la com realismo e dignidade... Visto que ele, Abraão, morreu como um bom hebreu, ele não teria tido nenhuma noção de sua própria sobrevivência após a morte. Mas com uma pequena licença cristã, podemos seguramente colocar na boca dele as palavras que John Bunyan colocou na boca do Sr. Valiant-for-Truth em sua obra O Progresso do Peregrino, à medida em que essa alma intrépida recebeu sua convocação para entrar na Cidade Celestial. Não consigo pensar em um melhor epitáfio [para Abraão]. ‘ “Ainda que com grande dificuldade eu tenha chegado aqui, mesmo agora eu não me arrependo de todo o transtorno que tive para chegar onde eu estou. Minha espada eu dou a ele que me sucederá na minha peregrinação, e minha coragem ao lar que ele pode obtê-lo. Minhas marcas e cicatrizes eu carrego comigo, para serem uma testemunha para mim, de que eu lutei as batalhas daquele que agora será meu recompensador. . . .” Ele se foi, e todas as trombetas soaram para ele no outro lado’.”. – Genesis - Volume I, de John C. L. Gibson, Westminster John Knox Press, 1981, pp. 132-135, colchetes acrescentados.

Portanto, o que os teólogos cristãos fizeram ao lançar mão da filosofia para falar da alma e de outros assuntos foi apenas apresentar as crenças do Cristianismo com linguagem e termos filosóficos. Ou seja, explicaram de uma maneira mais adequada aos ouvidos gregos determinadas concepções que já existiam. É claro que novos conceitos também surgiram como resultado desse diálogo entre os dois sistemas, porém a crença na sobrevivência da alma depois da morte não foi um deles, pois ela já existia desde a era apostólica, conforme ficou evidente nos exemplos anteriormente apresentados. E mesmo no Antigo Testamento nunca houve o entendimento da aniquilação absoluta, ainda que o cenário de sombras no triste mundo subterrâneo não fosse algo assim tão animador.

Na história cristã houve apenas uma situação onde surgiu inovação no entendimento sobre a alma devido à influência grega, não se limitando assim apenas a situações equivalentes e comparáveis. Foram os movimentos heréticos do gnosticismo, cujos divulgadores também se identificavam como sendo cristãos. O aspecto principal importado por eles do platonismo foi o desprezo do corpo, que consideravam algo mau e a própria sepultura da alma, da qual era preciso libertar-se para obter a verdadeira vida. Devido a isso, eles expurgaram completamente a expectativa de uma ressurreição do corpo, seguindo assim os gregos. Já para os cristãos da grande Igreja a ressurreição do corpo era um dos principais ensinamentos. De modo que a crença secundária dela de que o ausentar-se do corpo faria os cristãos estarem com Cristo não era equivalente à visão gnóstica, pois para eles a separação da alma do corpo não era o ideal, e nem tampouco irreversível. Acontecia somente devido ao pecado. Mas um dia a pessoa seria completa novamente, quando recebesse o seu corpo de volta.

O desprezo do corpo pelos gnósticos era até mais radical que o incentivado pela filosofia grega, pois eles valorizavam muito o ascetismo e a autopunição, considerando que o mal fazia parte do projeto divino da criação. É tanto que o próprio Plotino combateu esses aspectos do gnosticismo, pois para ele as virtudes que conduzem a alma rumo às esferas superiores não necessariamente implicam em fazer o corpo sofrer (Enéadas I, 2). De qualquer modo as semelhanças das correntes gnósticas com o platonismo eram grandes, dentre as quais se destacam:

1) A exemplo dos pitagóricos, que se abstinham de carne por causa do mito da transmigração das almas, os encratitas também achavam que esse tipo de alimento atrapalhava a alma de alcançar seu objetivo final.

2) Os basilidianos acreditavam que a alma podia se reencarnar em animais.

3) Quando os docetistas afirmavam que Cristo teve apenas um corpo aparente e não real, tal ideia estava ligada ao conceito platônico de que a matéria é intrinsecamente má, então o Logos (Jesus) não pode ter se tornado realmente um ser material.

4) Os valentinianos dividiram as pessoas em três classes: os espirituais (ou gnósticos), os psíquicos e os materiais.  Estes últimos, por estarem completamente ligados à matéria não tinham esperança de salvação. Ainda que o pensamento grego não fizesse essa divisão, a relação causal entre o que é físico e a maldade está evidente, pois só os espirituais e psíquicos poderiam alcançar a Deus.

Mas, como diz o adágio popular, “há males que vêm para o bem”. Os gnósticos acreditavam nessas coisas e as divulgavam intensamente com requintes de erudição, de modo que as comunidades cristãs eram permanentemente expostas a tais ensinos. Há quem pense que esse foi o principal fator que fez a Igreja produzir muitos apologistas, a fim de combater as heresias gnósticas. Então, aspectos importantes do Cristianismo foram reafirmados, tais como a ressurreição do corpo, a graça de Deus para se obter a salvação e o combate ao dualismo platônico corpo-alma, a fim de valorizar o ser humano qual criatura integral de Deus (mas algumas ordens monásticas resistiam a essa ênfase, pois apreciavam o ascetismo, mesmo que não houvesse motivação gnóstica). A Igreja também se viu obrigada a definir quais seriam os textos canônicos da Bíblia, para fazer face aos diversos manuscritos e textos apócrifos que os gnósticos gostavam de divulgar. Até mesmo a composição de músicas e hinários pela Igreja foi uma resposta aos gnósticos, pois eles apreciavam muito essa forma de adoração.

Em adição a esses esforços, a Igreja excomungou todos os que aderiram ao gnosticismo e reorganizou sua própria instrução religiosa. Em suma, tudo o que veio a ser chamado de “ortodoxia cristã” surgiu especialmente devido à pressão dos gnósticos. – Veja “Plotino: um estudo das Enéadas”, 2008, ediPUCRS, de Aloysio Ullmann, pp. 116-118.

Conclusão

A comparação entre o que a igreja primitiva e os filósofos gregos ensinaram demonstrou que não têm fundamento as alegações de que o ensino cristão sobre a alma foi corrompido pelo platonismo. Isso não passa de um mito que é acalentado pelos que defendem o materialismo “cristão”, também chamado de aniquilacionismo. Sob influência de um “efeito papagaio”, ficam repetindo essa balela como se fosse uma informação acima de qualquer suspeita, mesmo não sabendo ao certo o que a fundamentaria. Sim, raramente um defensor dessa teoria conspiratória conhece realmente a antiga literatura cristã e muito menos a filosofia grega. O que fazem é apenas citar obras teológicas fora de contexto ou comentários de terceiros que ingressaram no mesmo círculo vicioso. Se alguém conhece adequadamente toda a bibliografia antiga sobre esse assunto e mesmo assim advoga o aniquilacionismo, seria recomendado um exame psicológico para descobrir a razão dessa escolha, pois dificilmente uma pessoa em seu perfeito juízo e de posse dessas informações negaria que não há evidências documentais de que os primeiros cristãos eram materialistas religiosos. A não ser que seja um erro proposital, típico dos obstinados.

Os cristãos sempre acreditaram que a morte resulta na continuidade da vida junto a Cristo, sem prejuízo à esperança da ressurreição do corpo físico. E mesmo os antigos hebreus, que não tinham uma visão completa sobre isso, não eram materialistas, pois acreditavam que os espíritos dos mortos (“sombras”) desciam para o Seol, um lugar que julgavam estar nas profundezas da Terra, da mesma maneira que o Hades dos gregos. Logo, fora do alcance de corpos físicos. Este era também o entendimento de outros povos semitas, a exemplo dos assírios e babilônios.

E com respeito à influência grega sobre o Cristianismo, ela realmente aconteceu, inclusive no processo de escrita do Novo Testamento. No entanto, não tocou na essência da crença judaico-cristã sobre a alma e a morte. Alterou apenas a forma como ela é apresentada. Por exemplo, ao invés de falar que uma pessoa que morreu desceu para o Hades, passou-se a dizer de maneira corriqueira que “a alma da pessoa” é que foi para lá. Ou seja, a mesma crença dita de uma maneira diferente. Além disso, cristãos a exemplo de Clemente de Alexandria e Orígenes foram buscar elementos e explicações da filosofia que poderiam ser usados para apresentar o Cristianismo aos filósofos pagãos, prática que não foi adotada pelos pais apostólicos do início do segundo século. Mas o aproveitamento da filosofia grega prevaleceu, e a partir do século IV a Igreja começou a sistematizar o seu ensino de acordo com o método filosófico e sua linguagem. É tal cenário que a pessoa deve ter em mente ao ler declarações como esta:

“Alguns dos primeiros Pais da Igreja viram a tremenda distinção entre o conceito platônico da alma e o conceito judaico-cristão primitivo e expressaram forte oposição à invasão do conceito platônico da ‘alma’ na vida e nos ensinamentos da comunidade cristã primitiva. Todavia, estes homens foram substituídos por outros Pais da Igreja que usaram a filosofia platônica para interpretar a teologia cristã na Igreja Cristã primitiva, um processo que ainda está em andamento nesta era moderna”. – O Conceito de Alma em Platão e na Concepção Judaico-Cristã Primitiva, 1958, Universidade de Boston, de Lester I. Newman.

No entanto, há dois problemas que frequentemente ocorrem em declarações desse tipo: (1) quem as faz pode ter motivação aniquilacionista, e quer fazer o leitor crer que os primeiros cristãos não acreditavam na sobrevivência da alma após a morte, ou então (2) mesmo que o autor do texto não tenha tal opinião, e esteja pensando no que realmente aconteceu, pessoas que não conhecem esse assunto o citam de maneira errônea, dando a entender que o autor está apoiando o aniquilacionismo. Para uma análise desses dois problemas, recomenda-se a leitura do texto abaixo indicado:

Obras Teológicas e de Referência Apoiam o Aniquilacionismo?

Mas o fato concreto e bem documentado é que nem os primeiros pais da igreja nem os que depois abraçaram a filosofia grega passaram a crer na imortalidade da alma devido ao platonismo ou qualquer outra escola. Todos os cristãos, desde o tempo dos apóstolos, acreditavam que a alma sobrevive à morte do corpo, ainda que dúvidas fossem ocasionalmente levantadas sobre o que aconteceria à alma se a pessoa fosse condenada por Deus no Juízo Final. Por isso há tantas diferenças entre o platonismo e o Cristianismo. Dos pontos que foram analisados, mais de 70% do que ensinava a filosofia grega é o contrário do que os antigos cristãos acreditavam, conforme indicado na tabela abaixo:

Na revelação bíblica dada aos cristãos sobre o que acontece depois da morte, a crença cristã se resume no seguinte:

1) O homem é formado por um corpo físico e uma alma espiritual.

2) A morte resulta apenas na dissolução do corpo, pois a alma continua existindo.

3) Em algum momento depois da morte a alma vai para um lugar chamado de Seol ou Hades.

4) No Hades a alma fica aguardando de maneira consciente o dia em que receberá novamente um corpo físico, na ressurreição dos mortos, momento em que a pessoa que morreu será novamente um ser humano. Mas o corpo será melhorado e glorificado, apto para viver tanto na Terra quanto no céu, em imitação à ressurreição de Jesus.

5) Enquanto isso não acontece, os justos são poupados das aflições do Hades e ficam aguardando em um lugar melhor chamado de “Seio de Abraão” ou até mesmo no céu.

O que os filósofos cristãos fizeram foi apenas adaptar essas informações a determinadas explicações da filosofia grega, por analogia. E não o contrário! É o caso dos termos “dicotomia” e “dualismo”. Ainda que para os gregos esses conceitos derivassem da ideia de que o corpo é imprestável e a alma, o verdadeiro “eu”, que quer se livrar dele, para os cristãos a utilidade dessas palavras se resume apenas aos sentidos básicos delas. Ou seja, se realmente o corpo morre e a alma permanece, existe indubitavelmente uma divisão, separação ou dicotomia. Não porque fizesse parte do propósito original de Deus, mas porque passou a existir devido ao pecado edênico. Sendo assim é uma situação anormal que será revertida na ressurreição. Algo semelhante ocorre no caso do dualismo. De fato, existe uma oposição. Mas não da alma contra o corpo, e sim do corpo contra a alma, devido também ao pecado. E o remédio será o mesmo: a ressurreição.

Portanto, o chamado “platonismo cristão” não é continuidade do platonismo grego. É apenas uma maneira diferente de explicar coisas que já existiam independentemente de qualquer filosofia. Sendo assim, os detratores dos “imortalistas” é que agem sem nenhum pudor ao emitir seus juízos desfavoráveis, como é o caso do que foi citado no início deste texto, pois ignoram ou desconsideram informações importantíssimas a exemplo das que foram aqui apresentadas. E, com ares de erudição, ainda se apresentam como defensores da Bíblia, quando a verdade pura e simples é que são apenas ignorantes ou então desonestos mesmos.

 

Lista de abreviações das traduções bíblicas utilizadas

ACRF: Almeida Corrigida e Revisada Fiel

AM: Ave Maria

AMP: Amplified Bible.

AREB: Almeida Revisada Imprensa Bíblica

BJ: Bíblia de Jerusalém

CBC: Centro Bíblico Católico.

KJA: King James Atualizada

MD: Mensagem de Deus

NTLH: Nova Tradução na Linguagem de Hoje

NVI: Nova Versão Internacional

PER: Bíblia do Peregrino.

SBB: Sociedade Bíblica Britânica

TEB: Tradução Ecumênica da Bíblia

TNMB: Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada (2015)

TNM: Tradução do Novo Mundo (1986)

 

Fortaleza, 18 de julho de 2017.

Última atualização em 30/08/17.

Autor: Adelmo Medeiros

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