A TRADUÇÃO CORRETA DE DEUTERONÔMIO 32:8
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O livro "Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto" traz uma análise interessante de várias informações importantes que os manuscritos do Mar Morto trouxeram para os estudiosos da Bíblia e da religião judaica. Por exemplo, o livro comenta o texto de Deuteronômio 32:7, 8, que diz:

“Lembra-te dos dias da antiguidade, considerai os anos atrás, de geração a geração; Pergunta a teu pai, e ele te poderá contar; a teus homens idosos, e eles to poderão dizer. Quando o Altíssimo deu às nações uma herança, quando separou uns dos outros os filhos de Adão, passou a fixar o termo dos povos com respeito ao número dos filhos de Israel.”

Um leitor atento da Bíblia poderia se perguntar o que os filhos de Israel teriam a ver com a divisão dos povos e nações feita por Deus, uma vez que em tais tempos primitivos a nação israelita sequer existia! Teria a Bíblia Hebraica um erro na parte final desse versículo? Embora o texto hebraico massorético seja o texto consagrado da Bíblia, a ponto de ser considerado o texto padrão, é razoável supor que alguns trechos dele podem não representar a informação original do escritor, que pode ter sido alterada por erro de cópias ou devido a opiniões de natureza teológica dos copistas, que se acharam no direito de fazer algumas “correções”. Muitas obras que tratam da história de transmissão dos textos bíblicos abordam essa real problemática sobre se o que lemos hoje na Bíblia é o mesmo que se lia em tempos antigos. - Veja o apêndice 1 B da Tradução do Novo Mundo com Referências e Notas Marginais.

Se lermos esse texto de Deuteronômio na Septuaginta grega encontraremos uma outra conclusão. Ao invés de “filhos de Israel” a Versão dos Setenta contém “filhos de Deus”. Agora sim o texto faz sentido até o final! Sir Lancelot Brenton, na sua edição da Septuaginta, chegou a traduzir essa passagem da seguinte forma:

“Quando o Altíssimo dividiu as nações, quando separou os filhos de Adão, ele estabeleceu os limites das nações de acordo com o número de anjos de Deus.”

Apesar de alguns comentaristas tentarem dar uma interpretação peculiar para a expressão “filhos de Deus”, obviamente com o intuito de fugir da implicação natural desses termos, é muito claro que na Bíblia Hebraica “filhos de Deus” significam anjos, conforme atesta o livro de Jó:

“Ora, veio a ser o dia em que os filhos de Deus entraram para tomar sua posição perante Jeová, e até mesmo Satanás passou a entrar no meio deles. Jeová disse então a Satanás: ‘Donde vens?’ A isto respondeu Satanás a Jeová e disse: ‘De percorrer a terra e de andar nela.’ ” – Jó 1:6, 7.

É de causar estranheza essa convivência pacífica entre Deus e aquele anjo que seria o causador de todo o sofrimento e conflito universais, não acha? No entanto, se lermos Deuteronômio 32:8 de acordo com a redação da Septuaginta, poderemos chegar à conclusão de que desde o início Deus é quem confiou os domínios da Terra aos seus filhos espirituais, distribuindo essa possessão da maneira que Ele bem decidiu. O escritor cristão Orígenes, do século III, fez referência a tal divisão do mundo e ainda disse que ela também é mencionada na literatura dos gregos e egípcios, porém de acordo com suas mitologias:

“Parece-me, de fato, que Celso não compreendeu algumas das razões mais profundas relacionadas com o arranjo dos assuntos terrestres, algumas das quais são tocadas até na história grega, quando alguns dos que são considerados deuses são apresentados como tendo lutado uns com os outros pela posse da Ática, enquanto nos escritos dos poetas gregos também, alguns que são chamados deuses são representados como reconhecendo que certos lugares aqui são preferidos por eles antes de outros. A história das nações bárbaras, além disso, e especialmente a do Egito, contém algumas alusões à divisão dos chamados lares egípcios, quando afirma que Atena, que obteve Saïs por sorte, é a mesma que também possui a Ática. E os sábios entre os egípcios podem enumerar inúmeros exemplos deste tipo, embora eu não saiba se eles incluem os judeus e seu país nesta divisão. E agora, no que se refere a testemunhos fora da Palavra de Deus que se referem a este ponto, foram suficientes para o presente. Dizemos, além disso, que o nosso profeta de Deus e seu servo genuíno Moisés, em sua canção no livro de Deuteronômio, faz uma declaração sobre o repartição da terra nos seguintes termos: Quando o Altíssimo dividiu as nações, quando Ele Dispersou os filhos de Adão, Ele estabeleceu os limites do povo de acordo com o número dos anjos de Deus; E a porção era o seu povo Jacó, e Israel o cordão da sua herança. E com respeito à distribuição das nações, o mesmo Moisés, em sua obra intitulada Gênesis, assim se expressa no estilo de uma narrativa histórica: E toda a terra era de uma língua e de um só discurso. E aconteceu que, partindo do oriente, encontraram uma planície na terra de Sinar, e ali habitavam". – Contra Celso, Livro V, cap. 29.

As relações entre esses domínios e o seu alcance são pouco explicados na Bíblia, certamente porque não precisamos saber mesmo, mas se lermos alguns trechos de Daniel poderemos ter uma ideia. Em certo momento o anjo Gabriel relata as dificuldades que encontrou ao adentrar nos domínios terrestres para cumprir sua missão. Ele mesmo contou ao profeta Daniel o que acontecera:

“Não tenhas medo, ó Daniel, pois desde o primeiro dia em que fixaste teu coração no entendimento e te humilhaste perante o teu Deus, foram ouvidas as tuas palavras, e eu mesmo vim por causa das tuas palavras. Mas o príncipe do domínio real da Pérsia opôs-se a mim por vinte e um dias, e eis que veio ajudar-me Miguel, um dos mais destacados príncipes; e eu, da minha parte, permaneci ali ao lado dos reis da Pérsia." – Daniel 10:12, 13.

Por ter tido capacidade de enfrentar o anjo Gabriel por 21 dias certamente esse “príncipe da Pérsia” é um espírito também, pois um ser humano não poderia lhe fazer frente. Então, vemos claramente um domínio espiritual paralelo se desenrolando nos bastidores da cena do mundo. E parece que, como ocorre na parte visível, o poder desses "príncipes" é subdividido em categorias, de maneira semelhante aos nossos presidentes, governadores, prefeitos etc. Note no final do versículo que, embora cada nação possua apenas um “príncipe” responsável, há outros que são chamados de reis. Alguns poderiam dizer que esses “reis” eram os governadores humanos da Pérsia. Mas visto que o texto em apreço é principalmente uma descrição do que ocorre nos domínios dos “filhos de Deus”, o mais provável é que esses reis sejam, de fato, mais anjos que fazem parte desse “esquema de poder” invisível. O anjo Gabriel disse ainda para Daniel:

“Sabes realmente por que cheguei a ti? E agora voltarei para lutar com o príncipe da Pérsia. Quando eu partir, eis que virá também o príncipe da Grécia. No entanto, eu te contarei as coisas escritas na escritura da verdade, e não há ninguém que se mantenha forte comigo nestas coisas exceto Miguel, vosso príncipe." – Daniel 10:20, 21.

Ao usar a descrição “vosso príncipe”, fica implícito que o “príncipe” da nação de Israel é Miguel, que foi descrito como o “príncipe dos príncipes” (Daniel 8:25). Por isso, não é de admirar que alguns cristãos, ao longo da história, tenham identificado Miguel como sendo o próprio Jesus Cristo, o príncipe da paz e rei dos reis! Esta é mais uma evidência que vem a reforçar essa tese.

Observamos, portanto, que o domínio espiritual dos filhos de Deus sobre a Terra teve autonomia desde o início. Por isso, não espanta o relato de que aquele que veio a ser conhecido como “Satanás” tivesse toda essa liberdade de conversar com Deus e dar o seu parecer a respeito de suas andanças sobre a Terra, durante as reuniões periódicas dos filhos de Deus na corte celeste.

Mas qual é a conclusão correta de Deuteronômio 32:8? Filhos de Israel? Ou filhos de Deus? Estaria o texto massorético errado nesse ponto e a Septuaginta correta? Esse é justamente um dos assuntos abordados pelo livro "Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto" (pp. 177-181).

Foi encontrado nas cavernas de Qumram um fragmento de Deuteronômio, datado do século I antes de Cristo, que lança luz sobre essa questão. Portanto, segundo a Bíblia que era lida pelos judeus da época de Jesus o texto de Deuteronômio 32:8 é concluído com a expressão "filhos de Deus", equacionando de forma definitiva esse questionamento. É por essa razão que a Septuaginta já apresentava "filhos de Deus", pois a Bíblia Hebraica utilizada pelos judeus em Alexandria ainda não tinha sido alterada nesse versículo, conforme atesta o fragmento encontrado no Mar Morto. Já há tradutores modernos que corrigem esse versículo, tais como os da Revised Standard Version e os da Bíblia de Jerusalém.


Fragmento de Deuteronômio 32:8, achado em Qumran

"Quando o Altíssimo repartia as nações, quando espalhava os filhos de Adão ele fixou fronteiras para os povos, conforme o número dos filhos de Deus, mas a parte de Iahweh foi o seu povo, o lote da herança foi Jacó." - Deuteronômio 32:8, 9, Bíblia de Jerusalém.

"Quando o Altíssimo deu às nações sua herança, quando separou os filhos dos homens, ele fixou os limites dos povos de acordo com o número dos filhos de Deus. Mas a porção do SENHOR é seu povo, Jacó é o lote da sua herança." - Deuteronômio 32:8, 9, Revised Standard Version.

 

Texto atualizado em 08 de junho de 2017.

 

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