A QUESTÃO DO SANGUE - LEI BÍBLICA OU INTERPRETAÇÃO DE HOMENS?
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É fato bem conhecido que os aderentes da religião “Testemunhas de Jeová” (TJs) não aceitam transfusões de sangue. No entanto, eles se sentem livres para receber derivados sanguíneos, obtidos pelo processamento de um grande número de doações sanguíneas feitas por pessoas de outras religiões. É o caso da albumina. Essa substância normalmente está presente em um medicamento muito utilizado pelas TJs, chamado eritropoetina (EPO). Sobre tal derivado sanguíneo, o portal oficial da religião apresenta a seguinte informação:

“O entendimento religioso das Testemunhas não proíbe de modo absoluto o uso de componentes, como a albumina, as imunoglobulinas e os preparados para hemofílicos; cabe a cada Testemunha decidir individualmente se deve aceitar a esses”. – Frações de sangue e procedimentos cirúrgicos, negrito acrescentado.

Sobre outra fração sanguínea chamada Fator VIII, eles também informaram o seguinte:

“Cada lote de Fator VIII é fabricado do plasma coletado de até 2.500 doadores de sangue”. – Revista A Sentinela, 1º de outubro de 1985, p. 23, grifo acrescentado; veja também a revista Despertai! de 8 de outubro de 1988, p. 11.

Embora as TJs portem um documento informando que tais decisões se baseiam em suas próprias consciências, qualquer pessoa que estiver bem informada sobre o assunto sabe que a postura comumente adotada por elas resulta das “orientações” vindas da cúpula religiosa que eles chamam de “Corpo Governante”, que é uma espécie de “Papa” coletivo que fica nos Estados Unidos. Na prática, as diretrizes que emanam desse poder central têm força de lei entre as TJs. No entanto, por motivos óbvios, os seus integrantes evitam trazer para si a responsabilidade por essa recusa do sangue. O único documento que se tem notícia onde é possível inferir a real situação é um informativo que eles distribuíram em 1978 à comunidade médica, chamado “A Transfusão de Sangue - Por Que não É Aceita Pelas Testemunhas de Jeová?” (pdf no link, 70 Kb), que foi assinado pelo próprio “Corpo Governante” – Despertai!, 08/03/79, p. 1, § 5.

Um detalhe normalmente ignorado

O que muitas pessoas de tal religião não sabem, geralmente as mais novas ou recentemente convertidas, é que algumas décadas atrás as frações sanguíneas hoje liberadas eram proibidas, pois seus líderes* diziam que tais frações também estavam sob a mesma “proscrição bíblica” supostamente aplicada às transfusões de sangue. Diziam eles:

“Embora este médico [o Dr. L. A. Erf] argumente em favor do uso de certas frações de sangue, especialmente de albumina, estas também caem sob a proscrição bíblica. De fato, estas frações não são apenas usadas pelos médicos, mas também pelos que processam produtos alimentícios, e, por isso, é bom notar-se as etiquetas em tais produtos, para se verificar se contêm quaisquer substâncias ou frações de sangue. Quando em dúvida, é melhor passar sem os mesmos”. – Revista Despertai!, 15 de janeiro de 1957, p. 12, colchetes e negritos acrescentados.

* As TJs também são "orientadas" a dizer que não possuem líderes, pois o líder delas seria apenas Jesus Cristo. Obviamente, essa visão não se sustenta, pois os fatos demonstram que elas possuem líderes sim, a exemplo de qualquer outra religião. Esse é o modelo natural e costumeiramente aceito pelos que vivem em sociedade e concordam em ser conduzidos por seus semelhantes.

O histórico de uma interpretação

Na verdade, a liderança das testemunhas “de Jeová demorou um longo tempo para chegar ao entendimento que parece ser o definitivo sobre derivados sanguíneos. Foram várias idas e vindas na opinião sobre se as frações do sangue estavam ‘proscritas’ ou não pela Bíblia... Veja a seguir. Clique na edição mencionada para ver uma imagem da publicação onde a respectiva citação está.

1) Frações proibidas (1957):

“Embora este médico argumente em favor do uso de certas frações de sangue, especialmente de albumina, estas também caem sob a proscrição bíblica”. – Despertai!, 15 de janeiro de 1957, p. 12.

2) Frações liberadas (1959):

“Devemos considerar a injeção de soros tais como as antioxinas contra a difteria e as frações de sangue, tais como a gama globulina, na corrente sanguínea, com o fim de aumentar a resistência às doenças por meio de anticorpos, na mesma base como beber sangue ou tomar sangue ou plasma de sangue por meio de transfusões? Não, não parece ser necessário classificar as duas coisas na mesma categoria, embora tenhamos feito isso no passado”. – A Sentinela, 1º de fevereiro de 1959, pp. 95 e 96.

A edição original em inglês onde está o trecho acima é a de 15 de setembro de 1958, p. 575.

3) Frações proibidas (1962):

“É errado suster a vida mediante infusões de sangue, plasma, glóbulos vermelhos, ou várias frações de sangue? Sim! ... quer seja sangue integral quer fração de sangue, quer seja tomado do próprio corpo quer de outrem, quer seja administrado por transfusão quer por injeção, a lei divina se aplica”. – A Sentinela, 15 de março de 1962, p. 174 (parágrafos 16 e 19)

“Quanto às transfusões de sangue, já se sabe... que são uma prática antibíblica... pois não apenas sangue integral, mas qualquer coisa que se derive do sangue, e que for usada para sustentar a vida ou para fortalecer a pessoa, está sob este princípio”. – A Sentinela, 15 de julho de 1963, p. 443.

As edições originais em inglês onde estão os trechos acima são as de 15 de setembro de 1961, pp. 558, 559 (parágrafos 16 e 19) e 15 de fevereiro de 1963, p. 124, respectivamente.

4) Frações liberadas (1974):

“Que dizer, então, do uso dum soro que contenha apenas uma fração minúscula de sangue e que seja empregado para prover uma defesa auxiliar contra uma infecção, não sendo empregada para realizar a função sustentadora da vida normalmente desempenhada pelo sangue? Cremos que isto deve ser decidido pela consciência de cada cristão”. – A Sentinela, 15 de outubro de 1974, p. 640.

5) Frações proibidas (1975):

“Certos ‘fatores’ plasmáticos da coagulação acham-se agora em amplo uso para o tratamento da hemofilia... os que recebem tal tratamento enfrentam outro perigo mortífero: o semanário médico suíço Schweizer Med Wochenschrift relata que quase 40 por cento dos 113 hemofílicos estudados apresentaram casos de hepatite. ‘Todos esses pacientes receberam sangue integral, plasma, ou derivativos sanguíneos que continham [os fatores]’, observa o relatório. Naturalmente, os verdadeiros cristãos não utilizam este tratamento potencialmente perigoso, acatando a ordem da Bíblia de ‘abster-se de sangue’.”. – Despertai!, 22 de agosto de 1975, p. 29.

6) Frações liberadas (1978):

“Que dizer de se aceitarem injeções de soros para combater doenças, tais como os usados contra difteria, tétano, hepatite por vírus, hidrofobia, hemofilia e incompatibilidade de RH? Isto parece cair numa zona de ‘questões limítrofes’. Alguns cristãos acham que aceitar uma pequena quantidade de derivado de sangue para tal fim não é manifestação de desrespeito pela lei de Deus; sua consciência lhes permite isso... Outros, porém, sentem-se conscienciosamente obrigados a recusar os soros, por conterem sangue, embora em quantidades minúsculas. Por isso, adotamos a atitude de que esta questão precisa ser resolvida por cada pessoa, por decisão pessoal”. – A Sentinela, 1º de dezembro de 1978, p. 31 (decisão que vigora até hoje).

A última citação acima passa uma falsa impressão que cada TJ individual sempre pôde decidir sobre tal assunto. Mas este realmente não é e nunca foi o caso, não obstante o episódio relatado na penúltima seção que ocorreu na Bulgária. As testemunhas “de” Jeová não têm liberdade para decidirem por si próprias o que é questão de consciência ou não. É preciso a liderança delas nos Estados Unidos indicar, por decreto ou omissão, qual é a zona onde há livre-arbítrio para decisões. E isto se aplica praticamente a qualquer coisa, não apenas a tratamentos médicos que envolvem sangue. Naturalmente, não existe uma cartilha oficial que regule todos os aspectos da vida de uma TJ. Cada uma delas usufrui uma liberdade relativa no cotidiano. Mas sua liderança sente-se à vontade para interferir em qualquer campo, alegando a preservação de princípios bíblicos entre os “verdadeiros cristãos”, o que significa somente as TJs, na visão deles.

Vale lembrar também que as transfusões de sangue total eram aceitas nas primeiras décadas desse movimento religioso e eram inclusive incentivadas, conforme se nota na revista A Idade de Ouro, de 29 de julho de 1925, p. 683 e na revista Consolação, de 25 de dezembro de 1940, p. 19, ambas em inglês.

Para as testemunhas “de” Jeová que quiserem verificar por si próprias as citações acima nos suportes oficiais da religião, o CD-Rom Watchtower Library (Biblioteca da Torre de Vigia), em inglês, possui todas as revistas A Sentinela desde o ano de 1950. Já a versão em português desse mesmo CD tem a partir do ano de 1970.

A desculpa oficial

As publicações das “Testemunhas de Jeová” costumam justificar essas alterações de ensinamento citando a seguinte passagem da Bíblia:

“Mas a vereda dos justos é como a brilhante luz da manhã, que clareia mais e mais até a plena luz do dia”. – Provérbios 4:18, Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada.

Essa “válvula de escape” tem pelo menos dois problemas. Primeiro, os responsáveis por tais informações inconstantes alegam ser o único canal de comunicação de Deus na Terra. Ou seja, em qualquer momento do tempo, toda testemunha “de” Jeová encara o que eles publicam como sendo uma “orientação de Deus”. Então quer dizer que Deus fica mudando de opinião de acordo com a direção do vento? Pensar assim seria algo muito infantil, para dizer o mínimo. Em segundo lugar, existe uma inconsistência na aplicação do texto. A seqüência vacilante de acender e apagar de “luzes” que essas reinterpretações demonstram não está de acordo com a lógica apresentada no versículo. Quando o dia está nascendo a luz é sempre crescente. Não fica escurecendo e clareando novamente!

O “acordo” feito na Bulgária

Conforme mencionado no site oficial da religião TJ, na década de 90 eles fizeram um “acordo” na Bulgária a fim de obter a liberdade religiosa naquele país, intermediado pela Comissão* Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). No entanto, não é informado qual foi a contrapartida para que eles obtivessem a desejada legalização. Mas qualquer um pode verificar por si mesmo o teor do que foi acordado, acessando o documento nº 28626/95 da CEDH (baixe aqui o pdf original). Basicamente eles se comprometeram a não pressionar os adeptos da religião a recusar transfusões de sangue e nem punir os que aceitassem tal procedimento médico. O trecho do documento com esses termos está traduzido a seguir (seções 2 e 3 da parte II):

. . .

II. Em relação à posição das Testemunhas de Jeová sobre o sangue, a requerente compromete-se a redigir uma declaração que será anexada de forma integrante aos estatutos das Testemunhas de Jeová da Bulgária para seu registro, afirmando que:

2.1. - aos pacientes Testemunhas de Jeová que recorrem sistematicamente à assistência médica para si próprios e seus filhos, cabe a cada um deles usar seu livre arbítrio, sem qualquer controle e sanções por parte da requerente;

2.2. - quanto ao cumprimento da legislação de saúde búlgara, a Associação Cristã das Testemunhas de Jeová da Bulgária compromete-se a respeitar a sua aplicação, incluindo:

2.2.1. - não fornecer declaração prévia de recusa de transfusão de sangue para menores.

2.2.2. - no que diz respeito aos adultos, observar as disposições da referida legislação e reconhecer a liberdade de escolha de cada indivíduo.

III. Em relação ao reconhecimento do culto das Testemunhas de Jeová, por parte do Estado Búlgaro, como religião oficial:

3.1. A Associação Cristã das Testemunhas de Jeová concorda em retirar sua petição contra a Bulgária perante a Comissão Europeia dos Direitos Humanos;

3.2. Portanto, dada a remoção da petição, o governo búlgaro se compromete em registrar as Testemunhas de Jeová na Bulgária como um culto, de acordo com a lei sobre denominações religiosas.

. . .

* Hoje se chama “Corte” e não “Comissão”.

O que chama atenção nesse “acordo” é o compromisso que assumiram. Os que estão familiarizados com a política de controle e punição da religião TJ sabem que ela não funciona assim, pois seus seguidores não têm nenhuma autonomia para determinar se este ou aquele tratamento envolvendo sangue é aceitável ou não para o cristão. Tudo é decidido pelo “Corpo Governante”. Se, por exemplo, esse comando central resolvesse que todos os componentes sanguíneos são aceitáveis separadamente, desse dia em diante todas as testemunhas diriam que “suas consciências permitem” as referidas substâncias. Simples assim.

E quanto à questão das sanções aplicadas a eventuais desobedientes à norma imposta, isso também não ocorre de maneira suave e nem é negociável conforme o documento deixa transparecer. Mas não é preciso entrar em detalhes. Se você pertence a essa religião sabe do que estou falando. E os que não têm ideia de como funciona, basta procurar no Google. Veja um exemplo neste link. Talvez a única referência oficial da religião sobre essa circunstância seja um artigo onde eles dizem que os anciãos (pastores) vão avaliar caso a caso para decidirem se a TJ que aceitou sangue deverá ou não ser desassociada (excomungada). Mas isto parece ferir a essência do documento que assinaram na CEDH. Nele não há margem para discricionariedade por parte dos anciãos locais. – A Sentinela, 15/02/97, pp. 19-20.

A dúvida que esse episódio suscita se resume a duas questões: a liderança das TJs na Bulgária cometeu perjúrio ao se comprometer fazer algo que tinha consciência que não faria? Ou as TJs de lá realmente vivem uma exceção e podem aceitar sangue e todos os seus derivados se quiserem? As testemunhas que são fiéis ao “Corpo Governante” dizem que nem é uma coisa nem outra. Por conta própria, já que nunca houve um esclarecimento público e oficial, afirmam que aquilo acordado perante a referida Corte de Direitos Humanos vale para o mundo inteiro. Só não é muito divulgado. E você, o que acha? Acredito que as informações acima podem ser úteis para você formar a sua opinião.

Conclusão

Certamente a recusa de sangue por motivos religiosos é uma decisão polêmica e nem sempre é fácil mantê-la, porque envolve vidas. O acordo na Bulgária poderia deixar essa postura das testemunhas “de” Jeová mais moderada, caso ele realmente fosse cumprido da maneira que está posto no papel. Igualmente preocupante é o caso sobre como as frações sanguíneas foram encaradas ao longo dos anos pelos legisladores dessa religião, pois essa história também induz a sérias reflexões.

Qualquer leitor da Bíblia sabe que a lei do antigo Israel de abster-se de sangue era de caráter alimentar, ou seja, referente ao sistema digestivo e não ao circulatório. Eles não são situações equivalentes, pois se uma pessoa inconsciente no hospital recebesse apenas sangue na veia ela morreria de fome, visto que o sangue se integra ao organismo como se fosse um órgão. Se o sangue for ingerido pela boca, aí sim se torna um alimento. Além disso, a vedação israelita ao sangue era uma dentre muitas da lei mosaica, que foi abolida por Jesus Cristo (Romanos 10:4). De modo que o abster-se de sangue foi observado pelos cristãos primitivos apenas em caráter provisório, devido à transição do Judaísmo para o Cristianismo.

Portanto, a conclusão a que se chega é que tal “lei bíblica do sangue” tem sido tratada ao sabor do entendimento particular dos líderes americanos das TJs. E muito provavelmente eles já sabem que a interpretação que fazem é um tremendo equívoco, devido a tudo o que foi explicado aqui, além de outros pontos não comentados. Mas se mesmo assim eles querem insistir nesse erro, eles deviam pelo menos deixar toda e qualquer decisão sobre tratamento sanguíneo para cada testemunha individual. Talvez eles não façam essa mudança devido ao temor de processos judiciais, porque muitos já devem ter morrido por seguirem rigorosamente as “orientações” que sempre receberam para rejeitar transfusões de sangue ou medicamentos derivados dele. Mesmo hoje em dia, quando tratamentos médicos alternativos podem ser usados com mais sucesso, em situações extremas só mesmo o sangue funciona efetivamente. Ou então alguma de suas frações que antes “as consciências” das TJs não permitiam receber.

E por falar nisso, pelo menos esse comportamento das TJs fez com que elas servissem de “cobaias” para o desenvolvimento de procedimentos hospitalares sem sangue. Ainda que seja algo que ninguém desejaria nem para um inimigo, o benefício resultante para a sociedade em geral é inegável. Afinal, o sangue realmente não é completamente seguro e em algumas situações é interessante evitá-lo e optar pelas técnicas alternativas que as testemunhas “de” Jeová ajudaram a desenvolver.

Post scriptum

Eu não me interesso por esse assunto e só escrevi este artigo porque uma TJ com quem conversei recentemente se nega irracionalmente a admitir que sua religião tenha ensinamentos frutos de interpretações pessoais da Bíblia, porém travestidos de “orientações de Deus” (o referido diálogo se deu no mural de um vídeo no You Tube sobre a religião TJ). Para quem quiser se informar mais a respeito, recomendo a leitura dos dois artigos abaixo:

As Testemunhas de Jeová Realmente Abstêm-se de Sangue?

Assuntos Médicos e as Testemunhas de Jeová

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Artigo atualizado em 9 de agosto de 2017.

 

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