ANIQUILACIONISMO, IMORTALIDADE DA ALMA E ESPIRITUALISMO

Publicações teológicas geralmente afirmam que a punição dos maus será o sofrimento eterno num "inferno de fogo", e chamam de "aniquilacionistas" os que repudiam tal ensino e não acreditam na imortalidade da alma. Utilizo aqui um conceito mais restrito de aniquilacionismo, cujo foco é outro. Refere-se exclusivamente à crença de que a pessoa deixa de existir quando morre. Creio que o suposto lugar de tormento eterno mencionado por teólogos não cabe nessa discussão, e nem deveria ser enfatizado por eles. Portanto, o que entendo por "aniquilacionismo" é que qualquer pessoa ao morrer já está automaticamente aniquilada, sendo sua única esperança o tipo de "ressurreição" descrita mais adiante.

ALÉM DESTE ARTIGO, RECOMENDO TAMBÉM A LEITURA DO LIVRO "SOBRE O ANIQUILACIONISMO E A IMORTALIDADE DA ALMA"

ÍNDICE

1. Introdução

2. Implicação lógica da ideia aniquilacionista

3. Visualizando os argumentos com ajuda da Bíblia e da história

4. O pensamento judaico-cristão no primeiro século

5. O contexto da lei mosaica sobre não se evocar os mortos e o que foi dito aos cristãos

6. Passagens bíblicas que podem induzir à reflexão

7. Conclusão

1. Introdução

Praticamente todas as religiões, inclusive as cristãs, possuem o conceito de que os seres humanos são seres espirituais que habitam corpos orgânicos, e que após a morte todas as pessoas vão para o plano espiritual. Para corroborar essa crença os cristãos citam textos bíblicos, a exemplo dos seguintes:

“Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma.” - Mateus 10:28.

“Então o pó retorna à terra, assim como veio a ser, e o próprio espírito retorna a Deus.“ - Eclesiastes 12:7.

Não obstante a universalidade do ensino da imortalidade da alma, existe uma minoria de cristãos, comumente denominados de aniquilacionistas, que acreditam na total inexistência após a morte. Sobre a possibilidade de se voltar a viver, eles dizem:

"Acha difícil de acreditar na idéia duma ressurreição? Contudo, pode ver agora mesmo, nos programas de televisão, pessoas que já faleceram há muito tempo. Ouve suas vozes, observa suas ações e nota suas características. Se o mero homem pode preservar tais coisas em gravações de televisão, não deve ser difícil para o Deus Todo-sábio reter na memória a impressão detalhada da personalidade e das características de cada humano individual que desejaria recriar. Ele fez isso, e ressuscitará tais mortos para viverem novamente.... As pessoas poderão assim viver para sempre!" - Existe um Deus que se importa?, Sociedade Torre de Vigia, p. 27, negrito acrescentado.

Em outras palavras, para os aniquilacionistas a ressurreição para a vida eterna se dará da seguinte maneira: Quando chegar o tempo determinado, Deus formará um novo corpo orgânico* com mente completamente vazia. Deus puxará então de sua vasta memória todas as lembranças daquela pessoa que outrora viveu e as implantará no cérebro recém formado, fazendo em seguida a pessoa acordar. Ao abrir os olhos, o ressuscitado se recordará de tudo da vida anterior e terá absoluta certeza de que voltou a viver.

* Conforme revela o contexto, na explicação do livro acima os autores dizem que isso acontecerá quando a Terra for transformada em um paraíso. Mas os que forem ressuscitados para viver no céu também passarão por um processo semelhante, porém o corpo será espiritual.

2. Implicação lógica da ideia aniquilacionista

Antes de comentar essa “ressurreição”, considere um filme norte-americano chamado “O Sexto Dia”, protagonizado por Arnold Schwarzenegger. O filme retrata uma futura sociedade tecnológica que conseguiu inventar uma maneira de tornar o homem “imortal” aqui mesmo na Terra. Eles construíram uma máquina capaz de criar clones adultos das pessoas, porém com mentes totalmente vazias. Quem quisesse viver “para sempre” deveria fazer duas coisas:

1ª) Ceder uma amostra de material genético para encomendar seu futuro novo corpo.

2ª) Depois se submeter a um supercomputador, para ele fazer uma leitura do cérebro da pessoa e gravar todas as suas informações e lembranças em um banco de dados, sem escapar nenhum detalhe, inclusive os traços da personalidade.

Depois disso, se a pessoa, por uma fatalidade, morresse no dia seguinte, a empresa responsável pelo processo simplesmente implantaria as lembranças do defunto no corpo clonado e o faria acordar. Voi lá! Lá estaria a pessoa vivendo novamente, pronta para novos desafios. Se o "ressuscitado" voltasse a morrer, bastaria repetir o processo. Isto poderia ser feito quantas vezes fosse necessário.

Tudo bem. Que maravilha! No entanto, imagine o seguinte: o que aconteceria se a empresa resolvesse acionar essa “ressurreição” antes mesmo da pessoa original morrer? Um paradoxo seria então gerado, pois a “mesma” pessoa estaria vivendo em dois corpos ao mesmo tempo! E realmente essa situação acontece no filme, gerando as mais bizarras situações, fio condutor de toda a trama.


Cena com o personagem principal e seu clone, que se tornam amigos

Então? O que acha da ressurreição defendida pelos aniquilacionistas tendo como referência o "exemplo prático" que ocorre no filme "O Sexto Dia"? Você ficaria satisfeito se, depois de morto, voltasse a viver por meio desse tipo de "ressurreição"? Bem, certamente seu “clone” viveria feliz para sempre no local dessa hipotética ressurreição, mas e você? Ficaria contente sabendo que no futuro apenas um "eco" do seu ser ficaria reverberando pela eternidade? Gostaria que uma cópia perfeita da sua pessoa usufruisse para sempre dos sentimentos e lembranças que você construiu ao longo da sua vida? Embora isto seja até mais do que merecemos, a concepção de vida eterna do Cristianismo histórico é diferente, como será explicado mais adiante.

3. Visualizando os argumentos com ajuda da Bíblia e da história

Do ponto de vista teológico, é razoável supor que algo além da biologia orgânica é responsável pela identidade de cada ser humano, por que não dizer ID-ENTIDADE, fazendo analogia com a Informática. Cada pessoa é única por conta dessa essência que alguns chamam de “alma”, outros de “espírito”. (Embora exista diferença entre esses dois conceitos, para simplificar a exposição, considerou-se aqui que eles têm o mesmo significado). E com o desenvolvimento do Espiritualismo, em especial o codificado por Kardec, essa noção transcendente adquiriu proporções ainda maiores do que se vê na ortodoxia cristã. E isso tem gerado muitos debates, pois, mesmo crendo na imortalidade da alma, os cristãos tradicionais desconsideram um importante contexto histórico contemporâneo e sustentam que o Espiritismo é uma farsa, pois os espíritos que entram em contato com os humanos seriam anjos caídos, ou demônios. Nesse ponto, os aniquilacionistas se sentem até mais confortáveis, pois, para eles, não sobra nada depois da morte, a não ser a esperança de vida dos seus futuros “clones”.

Adentrando mais na discussão espiritualista, diante do exposto até aqui, pode-se chegar a duas conclusões:

1) Conforme os aniquilacionistas, se realmente a morte é o contrário da vida - a própria inexistência - e seremos, na vida eterna, meros clones de nós mesmos é mais do que lógico que é impossível a comunicação com os mortos, pois não se pode falar com quem não existe! Então, certamente tais espíritos que se comunicam com os humanos são impostores.

2) Por outro lado, se o homem é dotado de um espírito imortal e consciente, que assume diversas personalidades ao longo das Eras, de acordo com os espíritas, ou então fica vivendo em outra dimensão aguardando a ressurreição, conforme ensina o cristianismo tradicional, de uma forma ou de outra, existe a possibilidade de se falar com os mortos, contanto que (1) a eles isso seja permitido, (2) assim eles desejem, e (3) eles tenham os meios necessários para isso. Daí entra a figura do médium, ou intermediador, se não for possível um contato direto, tal qual aquele retratado pelos três jovens pastores de Fátima, em Portugal. - Leia na Bíblia o texto de Lucas 16:19-31.

É bom que se mencione que uma significativa parcela da Cristandade, os católicos romanos, crêem em algo que não difere tanto assim do que afirma o Espiritismo. É a doutrina dos "santos", que consiste na ajuda provida aos seres humanos por pessoas que já teriam vivido na Terra. No Espiritismo esta é uma prática comum, e ainda mais corriqueira. Certamente este é um dos motivos porque é muito mais fácil um católico se tornar kardecista do que um protestante, pois os católicos estão mais próximos dessa ideia de comunicação com pessoas do mundo espiritual.

No que diz respeito à reencarnação, o que muitos teólogos cristãos ensinam não deixa de ser um tipo de reencarnação. Por exemplo, uma conhecida oração católica diz em certo momento: “Creio.... na ressurreição da carne.” A diferença primordial em relação ao ensinamento espírita é que a Igreja admite apenas uma reencarnação (na ressurreição dos mortos) e não várias. Outra dessemelhança é que não se sabe ao certo como tal "reencarnação" se daria. Evidentemente não seria através da gestação uterina. Alguns acham que Deus poderia restabelecer milagrosamente para o ressuscitado o mesmo corpo físico que teve antes de morrer e que se decompôs com o tempo.

Os judeus, por sua vez, desde os tempos helenísticos acreditam na imortalidade da alma, conforme atestam fontes históricas. No ano 73 d.C., quando judeus zelotes em Massada se viram encurralados pelo imbatível exército romano, preferiram tirar a própria vida a se renderem aos que destruíram o templo e a cidade de Jerusalém. Conforme explicou o historiador Flávio Josefo, testemunha ocular do evento, o que os motivou a esse ato desesperado foi a crença na vida espiritual após a morte. Josefo informa que o conceito deles sobre o que acontece depois da morte era o seguinte:

“A alma regressa ao seu ponto de origem onde goza de uma feliz liberdade e de uma força sempre subsistente, é invisível como Deus; não podemos percebê-la”. – A Guerra Judaica, de Flávio Josefo, conforme citado na revista A Sentinela, 01/08/96, p. 4.

E os judeus foram ainda mais longe em seu conceito sobre a imortalidade. Muitos deles já tinham um conceito primitivo de transmigração de almas, isto é, da alma de quem morreu passar a habitar um outro corpo num momento posterior. Sobre os judeus fariseus, diz o mesmo historiador Flávio Josefo:

“Eles crêem que almas têm poder de sobreviver à morte e que há recompensas e punições debaixo da terra para os que levaram uma vida de virtude ou uma de vício: encarceramento eterno é o destino das almas más, ao passo que as almas boas recebem passagem fácil para uma nova vida.” – Antiguidades Judaicas, XVIII, 14 [i, 3].

“Eles sustentam que toda alma é imperecível, mas que só a alma dos bons passa para outro corpo, ao passo que a alma dos iníquos sofre punição eterna.” - A Guerra Judaica, II, 162, 163 (viii, 14).

Atualmente, a vertente mística do Judaísmo, a Cabala, advoga a reencarnação de maneira muito semelhante a dos espiritualistas. Provavelmente, os conceitos acima foram a fase embrionária do reencarnacionismo judaico, ensinado hoje em dia.

Algumas referências informam erroneamente que o conceito da reencarnação apareceu entre os cristãos antigos na figura de um Pai da Igreja chamado Orígenes (185-254 d.C).* É o caso da nota abaixo que aparece em uma Bíblia comentada:

“Foi o mais célebre membro da Escola de Alexandria, estudou os filósofos gregos e acreditava que a alma é preexistente e está subordinada à metempsicose. Neste ponto, encontramos em seus ensinos uma tese tipicamente pitagórica e platônica. Abandonada depois pelo cristianismo oficial, tal tese é relembrada ainda hoje por aqueles que a defendem como cristã: os espíritas.” – A Bíblia Apologética, Os patriarcas, p. 1322.

No entanto, Orígenes não acreditava na reencarnação, e em vários momentos de seus escritos ele expôs sua descrença em tal conceito, conforme o seguinte exemplo:

“Os seguidores de Pitágoras, que se abstêm de tudo o que contém a vida, podem fazer o que quiserem... Essa abstenção é porque acreditam na fábula da transmigração das almas”. – Contra Celso, Livro V, cap. 49.

A crença de Orígenes se limitava à preexistência da alma, pois ele acreditava que as almas foram criadas em um mundo superior, em alusão ao relato bíblico sobre a queda de Adão do paraíso, entendido como sendo uma descrição alegórica em referência à toda humanidade. É neste contexto que as declarações a seguir de Orígenes devem ser compreendidas:

“Então, depois de ter examinado mais a fundo as Escrituras a respeito de Jacó e Esaú, achamos que não depende da injustiça de Deus que antes de ter nascido e de ter feito algum bem ou mal - isto é nesta vida -, tenha sido dito que o maior serviria o menor; e achamos que não é injusto que no ventre da mãe Jacó tenha suplantado seu irmão (...), se crermos que pelos méritos da vida anterior com razão ele tenha sido amado por Deus por merecer ser preferido ao irmão.” – De Principiis, Torino, 1968, Livro II, Cap. 9, item 7.

* Eu também tinha afirmado isso na primeira versão deste artigo, confiando em tais referências. Porém depois que li as obras de Orígenes descobri que essa informação não corresponde à realidade.

O pecado de Saul

Na verdade, uma leitura atenta da Bíblia livre de preconceitos indica que muito tempo antes da época helenística os judeus já acreditavam que o espírito de quem morre permanece vivo em algum outro lugar. Isto fica claro no relato em que Saul, o primeiro rei de Israel, foi procurar uma médium a fim de tentar um contato com o profeta Samuel, que havia falecido*. Quem indicou a médium que ele deveria encontrar foram outros judeus que faziam parte de seu séquito. A lei de Israel, entretanto, proibia a evocação dos mortos. Mas não proibia que israelitas acreditassem que as pessoas vão para outro lugar quando morrem. O pecado de Saul foi “forçar” o aparecimento de Samuel, e não de acreditar que ele estava vivo em um mundo espiritual. Além disso, a narrativa bíblica identifica o espírito que apareceu como sendo realmente o de Samuel. Em nenhum momento o narrador esclarece que ali seria um espírito impostor**. É tanto que o livro de Eclesiástico***, presente nas Bíblias católicas, menciona o aparecimento de Samuel para Saul da seguinte maneira: “Depois disto, Samuel morreu e apareceu ao rei, predisse-lhe o fim da sua vida, e levantou a sua voz de debaixo da terra, profetizando, para destruir a impiedade do povo.” Logicamente, se Saul e seus ajudantes achassem que os espíritos dos mortos não existem e que, na verdade, eram demônios que se passavam por quem já morreu, dificilmente eles teriam procurado aquela médium. – 1 Samuel 28:4-7; Eclesiástico 46:23.

* O desespero de Saul aconteceu porque Deus não se comunicava mais com ele por meio de sonhos, dos profetas e de uma peça sagrada chamada Urim, que era consultada em caso de necessidade (1 Samuel 28:6). Segundo alguns comentaristas, o Urim talvez fosse um objeto onde havia em suas faces as palavras “sim” e “não”. Ao ser jogado indicava a resposta de Deus, depois de feita uma pergunta simples que precisasse apenas de um sim ou de um não. Há quem pense também que o Urim pode ter sido um artefato que se movia de maneira sobrenatural, pois a Bíblia informa que Saul não estava mais obtendo respostas dele. Se fosse apenas um tipo de dado, sempre haveria uma resposta, dentre as duas possíveis. Seria apenas uma tentativa de adivinhar o que Deus pensava sobre o que foi perguntado. E o Antigo Testamento dizia: “Não pratiqueis a adivinhação.” (Levítico 19:31, TEB). Mas se fosse alguma coisa que dependesse de uma força inexplicável somente o dono desse poder decidiria se dava a resposta, que não seria, portanto, resultado apenas de uma probabilidade. Mas, enfim, seja lá como tenha sido, talvez na visão da maioria dos cristãos de hoje tais formas de esclarecimento (sonhos, profetas e objetos especiais) lembram mais o espiritismo que o cristianismo. Até mesmo a linguagem que já foi usada pelo antigo povo de Deus é vista com reservas por alguns cristãos de nosso tempo. Diz a Bíblia: “Em Israel, era assim que o homem falava ao ir buscar a Deus: ‘Vinde e vamos ao vidente’. Pois o profeta de hoje costumava ser chamado outrora de vidente.” – 1 Samuel 9:9.

** No trecho que narra o encontro de Saul com a referida médium, a Tradução do Novo Mundo, Bíblia oficial das "Testemunhas de Jeová", coloca aspas no nome "Samuel", provavelmente para induzir o leitor a pensar que ali não se tratava de Samuel, mas de um impostor. No entanto, essas aspas não aparecem nos manuscritos antigos da Bíblia, nem no texto-padrão em hebraico de Rudolf Kittel, que foi utilizado pelos tradutores dessa Bíblia.

*** Os protestantes atualmente consideram Eclesiástico um livro apócrifo e ele não consta em suas Bíblias. Ele também não foi incluído na Bíblia Hebraica dos judeus, talvez porque foi escrito no período intertestamentário. No entanto, Eclesiástico estava presente na Septuaginta, nos rolos do Mar Morto e na Vulgata Latina, produzida por volta de 400 d.C. Posteriormente, também foi incluído nas primeiras Bíblias protestantes (Martinho Lutero, King James e Reina-Valera). Oficialmente, a Igreja o considerou canônico somente no Concílio de Trento, em 1546. Devido a esse pronunciamento tardio, o livro de Eclesiástico é chamado de deuterocanônico ("canônico posterior").

4. O pensamento judaico-cristão no primeiro século

Algo que chama atenção é que mesmo já havendo no tempo de Jesus Cristo conceitos espiritualistas dentro da comunidade judaica, Jesus nunca entrou no mérito de discussões teológicas sobre esses assuntos. Lembre-se que ele também era judeu. De maneira semelhante, o apóstolo Paulo, um ex-fariseu, depois que se tornou cristão nunca tentou se retratar do conceito então vigente sobre a alma (é comum e natural uma pessoa, ao mudar de religião, fazer apologias contra aquilo em que antes acreditava)*. Se, por exemplo, o aniquilacionismo realmente fosse o conceito correto, por que Jesus ou Paulo não rebateram o ensino da imortalidade da alma, já em voga naquele tempo?

* No primeiro século, os judeus tinham liberdade para crer em determinadas coisas da maneira que quisessem. Os saduceus, por exemplo, deixaram de acreditar na ressurreição e na existência de anjos e espíritos. Esse abandono da crença predominante foi devidamente registrado no Novo Testamento e em fontes históricas. Sendo assim, se Paulo tivesse deixado de acreditar na imortalidade da alma dificilmente isso teria ficado sem algum registro. – Atos 23:8; Antiguidades Judaicas, XIII, 298 (x, 6); XVIII, 16, 17 (i, 4); A Guerra Judaica, II, 162-166 (viii, 14).

O motivo do silêncio de Jesus e de Paulo parece ser bem simples. Eles não refutaram a concepção de alma imortal porque não tinham absolutamente nada contra ela, da mesma maneira que a maioria dos judeus daquele tempo. Isto fica evidente até nos diálogos e linguajar utilizados pelas pessoas mencionadas no Novo Testamento. Basta prestar atenção ao ler determinadas histórias. Por exemplo, quando Jesus Cristo andou sobre as águas, durante uma tempestade, e seus discípulos viram aquela figura humana se aproximando do barco onde estavam, eles reagiram da seguinte maneira:

“E os discípulos, vendo-o andando sobre o mar, assustaram-se, dizendo: ‘É um fantasma!’ E gritaram com medo”. – Mateus 14:26, Almeida.

A Tradução do Novo Mundo diz "aparição" ao invés de "fantasma", talvez para amenizar o sentido da palavra grega que foi utilizada no texto, a saber, phantasma, que tem praticamente a mesma grafia do termo correspondente em português. Desde os tempos antigos, o sentido que as pessoas dão ao nome “fantasma” é justamente de alguém falecido que voltou do mundo dos mortos.

Situação semelhante aconteceu quando o ressuscitado Jesus apareceu repentinamente para seus discípulos. Sobre esse episódio, a Bíblia diz:

“Mas, visto que estavam apavorados e tinham ficado amedrontados, imaginavam ver um espírito”. – Lucas 24:37.


“Imaginavam ver um espírito...” (Lucas 24:37)                                                      ... e gritaram: “É um fantasma!” (Mateus 14:26)

5. O contexto da lei mosaica sobre não se evocar os mortos e o que foi dito aos cristãos

Se conversar com os "mortos" é manter contato com demônios, por que isto nunca foi dito clara e diretamente na Bíblia? Sendo a mediunidade algo que existe desde os tempos antigos, seria de se esperar uma palavra a respeito, para não deixar o entendimento dessa questão à mercê das conclusões pessoais dos leitores da Bíblia. Mas já que nada disso foi dito é sinal de que o motivo da proibição de não se tentar falar com os mortos era outro.

A lei de Israel dizia assim:

“Quando entrares no país que Javé, teu Deus, te der, não aprenderás a cometer as abominações daquelas nações. Não se achará, entre ti, quem faça passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha, quem se entregue à adivinhação, à astrologia, às feitiçarias e à magia, quem recorra a encantamentos, interrogue os espectros e os espíritos e quem invoque os mortos.” – Deuteronôminio 18:9-11, Bíblia Mensagem de Deus.

Percebe-se que o texto se refere a práticas religiosas das pessoas que moravam nas terras que os israelitas estavam prestes a se apossar. O autor dessas palavras, Moisés, sabia muito bem do que estava falando, porque tinha sido um príncipe do Egito, lugar então repleto de superstições, magia e presságios. E antes de liderar a libertação dos hebreus, Moisés também deve ter visto pessoalmente o que os futuros vizinhos de Israel faziam. Os hebreus não deviam aprender tais coisas das nações circunvizinhas depois que chegassem à terra prometida, porém muitos desobedeceram posteriormente.

Logo, contextualmente falando, a restrição imposta aos israelitas de não se evocar os mortos tinha como referência um conjunto de práticas das nações estrangeiras, que incluía principalmente a magia e a feitiçaria. Apenas estas últimas foi dito aos cristãos que eles deveriam evitar. A parte de não se falar com os mortos foi deixada de fora. (Gálatas 5:20) Somente o leitor da Tradução do Novo Mundo verá no Novo Testamento algo que lembra o mandamento mosaico, pois nessa Bíblia é dito: “Mas, quanto aos…. que praticam o espiritismo, e aos idólatras, e a todos os mentirosos, terão o seu quinhão no lago que queima com fogo e enxofre.” (Apocalipse 21:8) A frase “praticam o espiritismo”, porém, é um anacronismo* que não aparece no texto grego original. No lugar dela há “feiticeiros”. É isto o que diz a maioria das traduções. Os editores da versão Novo Mundo sabem disso, conforme revela uma enciclopédia que eles publicaram. – Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 2, p. 28.

* A palavra "espiritismo" é um neologismo criado pelos kardecistas no século 19, e não existia quando o Novo Testamento foi escrito.

Talvez o motivo dos israelitas terem sido proibidos de consultar os mortos seja porque eles já tinham os meios aprovados por Deus para serem esclarecidos: sonhos, profetas, urim e tumim. (Há os que pensam que os profetas eram, na verdade, médiuns aprovados). Certos costumes adotados pelas outras nações eram repugnantes sob vários aspectos, e os hebreus deviam evitá-los. Buscar as formas de “orientação” de tais povos era compactuar com tais práticas e desconsiderar o arranjo existente em Israel. Os israelitas não tinham necessidade disso, pois já eram guiados por Deus, através das maneiras de esclarecimento mencionadas.

6. Passagens bíblicas que podem induzir à reflexão

Em favor dos espiritualistas existem alguns relatos bíblicos que parecem até mesmo apoiar o conceito de que é possível a interação de pessoas da nossa realidade com as que vivem no mundo espiritual. Considere a seguir dois exemplos. No segundo deles fica implícito que a parte espiritual do homem pode, ocasionalmente, viajar até onde estão os espíritos, inclusive os anjos.

1) Em certa ocasião, Jesus conversou com dois "mortos": Elias e Moisés. Alguns apóstolos assistiram a tal cena, chamada na Bíblia de “visão”. Por ter sido uma visão não significa necessariamente que aqueles que foram visionados não existem. Por exemplo, vemos em programas de televisão pessoas conversando e discutindo assuntos. Mesmo elas não estando realmente dentro da tela, elas existem, lá no estúdio da emissora de TV. Isto é possível pela visão que a tela proporciona (tele-visão), graças à tecnologia contemporânea. – Mateus 17:1-8.


“Ele é Deus, não de mortos, mas de viventes.” – Lucas 20:37, 38

2) Certa vez, o apóstolo Paulo teve uma visão e foi transportado, segundo ele, ao paraíso, também chamado de “terceiro céu”*, e lá escutou de seus habitantes palavras inefáveis aos homens. Sobre esse fenômeno Paulo disse que não sabia ‘se tinha sido no corpo ou fora do corpo’. Note que, indiretamente, ele afirmou que é possível alguém sair do próprio corpo e ir para outro lugar. Para um aniquilacionista dos dias de hoje tal comentário pode parecer estranho, mas não para Paulo, um judeu oriundo dos fariseus, que acreditavam em uma alma espiritual que habita o corpo biológico e que se desprende dele por ocasião da morte. (2 Coríntios 12:2-4). Nesse contexto, certamente os primeiros cristãos viam com absoluta naturalidade as afirmações abaixo:

“E o resultado foi que, enquanto a sua alma partia (porque estava morrendo), ela chamou-o pelo nome de Ben-Oni; mas o seu pai chamou-o de Benjamim”. – Gênesis 35:18. (Morte da esposa de Jacó, Raquel, durante o parto).

“E [Elias] passou a estender-se três vezes sobre o menino e a clamar a Jeová, e a dizer: ‘Ó Jeová, meu Deus, por favor, faze a alma deste menino voltar para dentro dele.’ Jeová escutou finalmente a voz de Elias, de modo que a alma do menino voltou para dentro dele e este reviveu”. – 1 Reis 17:21, 22, colchetes acrescentados. (Ressurreição de um menino que tinha acabado de morrer).

“Mas ele [Jesus] a tomou pela mão e chamou, dizendo: 'Menina, levanta-te!' E voltou-lhe o espírito e ela se levantou instantaneamente”. – Lucas 8:54. (Ressurreição de uma menina que tinha morrido).

* Por que o paraíso é chamado de terceiro céu? Possibilidade de entendimento: O primeiro céu é onde voam as aves. O segundo céu é onde ficam as estrelas. E o terceiro céu onde estão os anjos (o domínio espiritual de Deus).


“Sua alma partia, porque estava morrendo...” – Gênesis 35:18

O lugar para onde o apóstolo Paulo foi transportado em visão deve ser o mesmo para onde irão os espíritos dos justos, mencionado pelo próprio Paulo na carta aos hebreus:

“Mas tendes chegado ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a incontável hostes de anjos, e à universal assembléia e igreja dos primogênitos arrolados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados”. – Hebreus 12:22-24, Almeida.

Os exemplos aqui mencionados ilustram bem que a Bíblia não é tão desfavorável assim ao que os espíritas pensam. De fato, a linguagem e pontos de vista presentes nas Sagradas Escrituras guardam até grande semelhança com aquilo que eles costumam falar no cotidiano. Refletir sobre isso poderá ajudar os cristãos históricos e aniquilacionistas a reavaliarem suas opiniões sobre os aderentes do espiritualismo, em especial os que dizem que também seguem a Cristo.

7. Conclusão

“Ó profundidade das riquezas, e da sabedoria, e do conhecimento de Deus! Quão inescrutáveis são os seus julgamentos e além de pesquisa são os seus caminhos!” - Romanos 11:33.

A simples exposição acima é suficiente para mostrar o quão difícil é se apegar dogmaticamente a determinados conceitos e desconsiderar todas as implicações, ainda que não estejam necessariamente “escritas”. No caso dos aniquilacionistas, certamente muitos deles nunca pararam para refletir no paradoxo gerado pelo seu conceito peculiar de “vida eterna”. A Divina Inteligência não pode ser racionalizada num conceito simplista e cômodo, apesar de não ser possível compreendê-la em sua plenitude.

E para todos os cristãos tradicionais que acusam os espiritualistas de serem “seguidores de demônios”, seria bom que refletissem nas seguintes advertências bíblicas:

“Parai de julgar, para que não sejais julgados; pois, com o julgamento com que julgais, vós sereis julgados; e com a medida com que medis, medirão a vós.” - Mateus 7:1, 2.

“Deveras, eu vos digo: Ao ponto que o fizestes a um dos mínimos destes meus irmãos, a mim o fizestes”. - Mateus 27:40.

“Em resposta, João disse: ‘Preceptor, vimos certo homem expulsar demônios pelo uso de teu nome e tentamos impedi-lo, porque ele não segue conosco.’ Mas Jesus disse-lhe: ‘Não tenteis impedi-lo, pois quem não é contra vós, é por vós’.” - Lucas 9:49.

"Chamar o justo de ímpio e o ímpio de justo são atitudes igualmente detestáveis para Deus." - Provérbios 17:15 .

"Se alguém souber fazer o que é direito e ainda assim não o faz, é pecado para ele." - Tiago 4:17.

Muitos espiritualistas afirmam que são também cristãos. Os kardecistas, por exemplo, possuem uma liturgia própria onde o nome de Jesus Cristo é presença constante. Se tais pessoas professam essa fé, não é sábio acusá-las de pertencerem a uma religião demoníaca. Não há versículos na Bíblia que justifiquem essa atitude. Além disso, alguns espíritas demonstram em suas vidas um nível de amor e altruísmo que se aproxima muito daquilo que foi ensinado por Jesus. No caso destes, não deveríamos sequer nutrir o pensamento que eles não são cristãos verdadeiros, só porque não entendem a Bíblia da maneira ensinada pelas religiões cristãs tradicionais.

Portanto, deixemos o julgamento para Deus!

Artigo atualizado em 15/06/17.

 

Créditos das imagens, respectivamente:

1 - Filme "O Sexto Dia" (clonagem de humanos adultos)

2 - Filme "O Sexto Dia" (supercomputador que copia a "mente")

3 - Filme "O Sexto Dia" (conversando com o clone)

4 - Jesus ressuscitado aparecendo em uma sala

5 - Jesus andando sobre as águas: "A Bíblia em Quadros" (1987), Editora Mundo Cristão

6 - Jesus conversando com Moisés e Elias

7 - Alma saindo do corpo

 

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